Formação profissional na Administração Pública

Maioria dos trabalhadores fica de fora

Eugénio Rosa
A formação profissional dos trabalhadores da Função Pública é fundamental para se poder modernizar a Administração Pública e para que esta possa prestar serviços de qualidade à população e de uma forma eficiente. Por isso interessa analisar o que está a acontecer na Administração Pública até para compreender o significado real das palavras do primeiro-ministro sobre as necessidades de formação e qualificação em Portugal tantas vezes repetidas.
O Programa Operacional Administração Pública, também conhecido por POAP, apresentou o seu Relatório Final de Execução na reunião da Comissão de Acompanhamento em Dezembro de 2009, em que participamos. A leitura deste relatório, que abrange o período 2004-2009, é bastante elucidativa sobre a política de formação e qualificação profissional na Administração Pública deste Governo.
Ele mostra bem a distância que existe entre as declarações e a prática do Governo.
O Eixo 2 – «Qualificação e Valorização dos Recursos Humanos» do POAP é o eixo onde é incluída toda a formação profissional cofinanciada feita a 390 000 trabalhadores da Administração Pública Central no período 2004-2009. As conclusões a que se chega da sua análise não deixam de ser preocupantes.
E isto porque o relatório não contém a informação mínima para se poder fazer um acompanhamento e uma avaliação fundamentada e consistente dos resultados obtidos com as acções realizadas, tanto em termos de valorização e qualificação dos trabalhadores e seus efeitos na carreira como em relação ao impacto na melhoria dos serviços prestados à população. No Relatório consta o número de formandos abrangidos por acções de formação – 167 362 –, no entanto não consta qualquer informação sobre horas de formação, áreas de formação e resultados da formação, o que era minimamente necessário para se poder fazer um acompanhamento fundamentado e consistente da execução deste eixo. Também aqui houve apenas a preocupação de cumprir as metas financeiras e de apresentar valores globais que não permitem ficar a conhecer quais os resultados das acções de formação realizadas. Repete-se o erro que tem caracterizado a maior parte da formação realizada em Portugal financiada por fundos comunitários, que é o de não se fazer qualquer esforço para avaliar de uma forma séria os resultados dessa formação.

Trabalhadores com direito a formação profissional são uma minoria

Os poucos dados que contém o Relatório Final revelam uma profunda distorção na execução da formação na Administração Pública. Em relação ao número de formandos abrangidos por acções de formação o Relatório indica que participaram em formação 167 362, ou seja, mais 59% do que a meta inicialmente prevista, que era 105 000, o que não deixa de ser positivo, embora ainda seja um número claramente insuficiente para as necessidades de formação neste sector. Basta recordar seguinte: (1) Este programa abrangia os «serviços da administração directa e organismos da administração indirecta do Estado» (pág. 33 do POAP); (2) O número de trabalhadores abrangidos por este programa era de 390 000 (pág. 21 dos Complementos de Programação – POAP) dos 529 000 trabalhadores da Administração Pública Central (este programa não abrangia os trabalhadores do sector da Saúde, nem da Educação, nem os militares). Apesar disso, logo à partida, apenas 42,9% tinham possibilidades de ter acesso à formação profissional. Mais de metade, precisamente 222 638, estavam excluídos logo à partida desta formação. E isto não era anualmente, mas durante um período de seis anos (2004-2009).
No entanto, se fizermos uma análise mais detalhada, utilizando os poucos dados que constam do Relatório, constata-se a existência de uma grave distorção na formação realizada, com reflexos negativos quer para os trabalhadores quer na modernização de toda a Administração Pública.
Assim, de acordo com os dados constantes da pág. 13 do projecto de Relatório, do total 167 362 formandos abrangidos por acções de formação «86 234 pertencem às carreiras de Dirigentes e Técnicos Superiores, número que permitiu atingir claramente o objectivo de, pelo menos, 25% do total dos formandos previstos pertencerem àquelas carreiras, conforme estipulado nos documentos programáticos do POAP». Por outras palavras, a meta inicial era de que 26 250 (25% de 105 000) fossem das categorias de «Dirigentes e Técnicos Superiores», mas devido à politica seguida pelo POAP e pelos serviços 86 234 participaram em acções de formação, o que significou um aumento de 228,5% em relação à meta inicialmente fixada. É evidente que esta triplicação (foi mesmo superior em mais de três vezes) do objectivo inicial foi conseguida à custa da redução da formação destinada aos restantes trabalhadores da Administração Pública e da participação de dirigentes e de técnicos superiores, cada um deles, em média em três acções de formação.
O quadro anexo, construído com dados do Relatório do POAP (formandos), mostra de uma forma clara as distorções que se verificaram ao nível da execução da formação.
Como revelam os dados do Relatório Final do POAP os formandos que tinham a categoria profissional de dirigentes e técnicos representaram 51,5% do total dos formandos. No entanto estas duas categorias de trabalhadores – dirigentes e Técnicos Superiores – de acordo o Boletim do Observatório da Administração Pública do DGAEP do Ministério das Finanças e da Administração Pública correspondiam apenas a 7,4% dos 390 000 trabalhadores da Administração Pública abrangidos por este programa de formação profissional.
Para se poder ficar com uma ideia mais clara da política de formação na Administração Pública do Governo interessa ainda referir que o número total de dirigentes da Administração Pública Central (inclui dirigentes superiores e intermédios) era, em 2008, segundo o Boletim do Observatório do Emprego, 5868 e o número de formandos que participaram em acções de formação desta categoria totalizaram 9226, o que significa que muitos dirigentes participaram em mais de uma acção de formação.
O mesmo sucedeu em relação aos técnicos superiores. O seu número era, em 2008, segundo também o Boletim do Observatório do Emprego, de 22 985 mas os formandos com esta categoria profissional que participaram em acções de formação foram 77 008, ou seja, mais do triplo.
É evidente que para poucos poderem participar em várias acções de formação, muitos não tiveram qualquer formação. Para concluir isso, basta ter presente o seguinte: Segundo os «Complementos de Programação – POAP», pág. 21, o número de trabalhadores que eram abrangidos por este programa de formação profissional era 390 000. Se cada trabalhador tivesse participado em apenas numa acção de formação profissional teriam recebido formação 167 362, ou seja, apenas 27 887 por ano, isto é uma taxa anual de formação de 7,2%. Para além disso, como 51,5% dos formandos eram das categorias de dirigentes e técnicos superiores que representavam apenas 7,4% dos trabalhadores da Administração Pública abrangidos pelo POAP, isto significa que para os 92,6% restantes, ou seja, para 361140 restaram apenas 80 333 vagas, o que significa que apenas 13 338 podiam ter formação por ano, ou seja, a uma taxa de 3,7%.
Assim, na Administração Pública Central (directa e indirecta) uma minoria de trabalhadores abrangidos pelo POAP (apenas 7,4%) puderam participar em várias acções de formação (em média, três), enquanto a maioria (92,6% dos trabalhadores da Administração Pública abrangidos pelo POAP) apenas 22 em cada 100 tiveram a possibilidade de frequentar formação. Dito de outra forma, em relação a 361 140 trabalhadores da Administração Pública, 78 em cada 100 trabalhadores não tiveram direito a formação profissional cofinancida no âmbito do POAP. E tenha-se presente que este programa de formação abrangeu o período 2004-2009, portanto seis anos.
A situação parece que não vai melhorar no futuro. E isto porque no novo quadro comunitário, agora chamado QREN, que abrange o período 2007-2013, parece que foram afectos apenas cerca de 100 milhões de euros do total de 6117,4 milhões de euros de fundos comunitários do Programa Operacional Potencial Humano para a formação dos mesmos trabalhadores da Administração Pública. Eis, na prática, a que se resumem as palavras de Sócrates sobre formação profissional num sector onde o Governo é directamente responsável. É este também o exemplo dado a nível governamental.


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