Domingo à tarde

Francisco Mota
A todas as Manuelas e todos os Paulos, que lutam pela vida, pelo trabalho, pela beleza

Paulo acordou já passadas as dez da manhã. Não era demais, já que todos os dias se levantava antes das sete, para estar na fábrica às oito. Esticou-se e foi passando lentamente do dormido ao acordado, com a sensação agradável de ter dormido bem.
Foi à casa de banho, vestiu o seu fato dos domingos: o fato de treino. Calçou uns ténis e foi ver onde estava a sua Manuela.
A Manuela estava despenteada, em robe e chinelos. Nada disto a favorecia. Chegou o Paulo e deu-lhe um beijo. Era um beijo rotineiro, mas eram pouco mais das dez da manhã. Comeu uma laranja e saiu para fazer os seus exercícios matinais que se resumiam em caminhar uns quinhentos metros, comprar o jornal e ir lê-lo para a Leitaria Penedono. Chamava-se assim porque o dono era de lá. Bebia uma bica e via os títulos dos jornais. Nesse momento começava a acordar realmente: os seus problemas de operário, os despedimentos em tantas fábricas, os roubos de tantos tipos importantes. Uns não saíam no jornal, outros vinham disfarçados de crise mundial e os roubos eram «exemplos isolados» da classe política. Paulo pensava que com tanto exemplo isolado já se podia fazer um batalhão de ladrões e mandá-los para o Afeganistão.
Voltava a casa irritado e com a sensação de que, afinal, tinha dormido mal.
A Manuela, há dois dias tinha salgado um focinho, um bocado de toucinho entremeado, e uma orelha de porco frescas que tinha comprado no talho «O Arouca», seu vizinho e natural de Arouca. No dia anterior tinha cozido as carnes e feito um refogado muito leve com duas cenouras, duas cebolas e uns dentes de alho. Deitou a água das carnes coada sobre o refogado e juntou-lhe um bom punhado de feijão encarnado, chouriço e uma morcela de Estremoz (a sua terra) e deixou cozer lentamente. No final pôs salsa cortada, pimenta negra e um pouco de cominhos. Descansava durante a noite e aquecia-se no dia seguinte. Ficava melhor.
O Paulo gostava de ter um arroz para ensopar. Ela não. Portanto umas vezes fazia-o outras não.
A Manuela tinha-se arranjado. Estava linda. Comiam com prazer. Era o momento mais terno que viviam os dois: o almoço de domingo. Enquanto comiam, os olhos buscavam-se. Tinham prazer. Reviam o amor.
Eles sabiam que a feijoada, o grão com chispe, o bacalhau guisado ou em arroz, seria o seu prato de luxo da semana. Bebiam uma garrafinha de tinto de Vila Nova de Tazem (a terra dele), que um tio lhes mandava de vez em quando. Tudo era bom e lhes sabia bem. Às vezes tinham um pouco de bom queijo de Nisa ou da proximidade da Serra da Estrela. A garrafa acabava-se.
Quando acabavam estes almoços e o Paulo se deitava num sofá já velhote que alguém lhes tinha dado em terceira mão, voltavam às suas cabeças as preocupações: se a empresa da Manuela aguentava ou iam todos para o desemprego? Se a fábrica do Paulo recebia finalmente ordens de produção da Alemanha? Seria que alguma negociata gorda se estava a cozer entre os bancos, os governos e os fundos de investimento. Agora já nem havia patrão no sentido clássico da palavra, mas sim uma coisa anónima, sem cara nem coragem, onde estavam os patrões mas ninguém os podia ver: os fundos.
Bebia Paulo um copito de bagaço e, realmente, aí acabava o domingo. Por influência do feijão um peso muito grande caía-lhe nos olhos. Adormecia. Quando acordava, sentia falta da sua Manuela. Chamava-a. «Estou a passar a roupa, durante a semana não posso». «Eu arrumo a cozinha», dizia Paulo.
O que se passava depois era um arrastar de horas, preocupações, sonhos desfeitos, raiva contida. Realmente não se passava nada. Havia amigos seus que iam ao futebol ver o Cova da Piedade ou mesmo o Vitória de Setúbal. Outros que iam jogar às cartas e outros, a maioria, que ficavam em casa a ver passar as horas, talvez a ouvir como vai o Benfica, o Sporting, o Porto, o Belenenses. Eram tristes as tardes dos domingos.
A tarde acaba-se. Não se passou nada. Uma solidão muito fina e cortante atravessa estas tardes. Às vezes só se pensa no que podia ter sido e não foi. Só se pensa em que momento e por quê a alegria foi assassinada pela tristeza. Mas enquanto houver Homens sérios e com vontade de lutar, a alegria voltará. Como cantava o Zé Afonso: «…e se houver uma praça de gente madura / e uma estátua de febre a arder…».
Havia pois!


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