- Nº 1871 (2009/10/8)

Pouca estima

Argumentos

Um dia destes, dois grupos de apoiantes de candidaturas diferentes encontraram-se à esquina de uma rua, cada um deles seguindo naquilo que se designa agora pela pouco atraente palavra arruada, parente próxima de uma outra pouco compatível com exemplares comportamentos cívicos. Trocaram empurrões, houve alguns insultos (e logo também apelos à calma e ao apaziguamento), não ocorreu sequer um ocasional tabefe que o calor da convicção militante pudesse estimular, e poucos minutos depois a coisa normalizou-se. Porém, o minúsculo incidente foi o bastante para que na TV se transformasse na grande notícia do dia em matéria de campanha eleitoral. Não espanta que assim tenha sido, é certo, sabendo-se que a grande vocação do fluxo telenoticioso que nos é fornecido é a exploração do escândalo, da intriga, do boato pejorativo mascarado de facto comprovado. Os níveis tecnológicos atingidos pela comunicação televisiva são muito altos, mas a qualidade dos seus conteúdos continua em larga medida inspirada pela tradicional maledicência de patamar por uma razão adivinhável mas muito triste: é que suposta ou efectivamente é disso que o povão gosta e, em consequência, é isso que fixa audiências e atrai os dinheiros da publicidade. Ainda assim, porém, o pequenino incidente dos dois desfiles eleitorais em choque é integrável num outro contexto, o da informação prestada pela TV sobre a campanha para as eleições autárquicas no quadro mais amplo do comportamento da televisão em relação ao Poder Local.

Uma informação de classe

Muito de longe em longe, ainda é possível ouvir na TV alguém dizer que o Poder Local é um dos maiores e mais fecundos avanços gerados pela Revolução de 74, isto é, uma das mais importantes entre as conquistas de Abril. Não me parece, porém, que a televisão (isto é, quem lá mora e quem lá manda) partilhe este entendimento. É certo que, de um modo mais geral, a televisão não gosta da política e de «os políticos», o que é explicável por um conjunto de motivos de diversa ordem entre os quais avulta o de que essa aversão foi desde há muito inoculada na chamada opinião pública, pelo que também ajuda a «vender» e a conquistar audiências ignaras mas convencidas. De qualquer modo, afigura-se que uma informação minimamente empenhada em ser objectiva e completa encararia este tempo eleitoral como o momento certo para informar a população telespectadora do que está de facto em jogo, isto é, das tarefas que com urgência ou sem ela o Poder Local tem de cumprir, mas também do notável património activo constituído pelo conjunto de avanços e progressos que o mesmo Poder Local pôs ao dispor dos cidadãos ao longo de mais de três décadas de vida democrática. Ora, todos os dias se tem visto que nem de longe isto acontece: a TV limita-se a transmitir pequenos farrapos das campanhas em curso, com quase inevitável ênfase sobre os instantes mais populistas do processo, e alguns debates em que as polémicas até podem ter instantes curiosos mas que não informam os eleitores do que mais contribuiria para uma avaliação justa e adequada do que é o Poder Local. Paralelamente, episódios de reportagem confiados a jornalistas ou equiparados que dão sinais de se suporem espertíssimos e atafulhados de ironias críticas (com óbvio prejuízo do dever de isenção mas largo proveito do enlevo com que o repórter se contempla) injectam no espírito dos cidadãos telespectadores a confirmação de que a generalidade dos autarcas é ridícula, néscia e corrupta. De tudo isto e de porventura algo mais emerge a evidência de que a televisão portuguesa tem pouca estima pelo Poder Local, o que até permite a suspeita de que esse desapreço decorra do seu carácter de maior proximidade das populações. Quanto ao que poderia designar-se por um aliás justificado horror à corrupção, não se dirá, naturalmente, que está errado. Mas poderá estranhar-se que a corrupção só seja denunciada quando floresce na área política e nunca, ou só muito excepcionalmente, entre o grande empresariado, como se a fauna humana que aí se move e prospera fosse feita de outra massa ou seja mais virtuosa. Na verdade, aí se revela que a TV, e não apenas ela, nos fornece uma informação de classe. O que, no mínimo, o cidadão comum não deve esquecer.

Correia da Fonseca