Preparar o futuro de Lisboa

Modesto Navarro
O que conseguimos retirar de mais importante e perigoso da acção de António Costa e do PS na Câmara Municipal é o enorme projecto preparado para descaracterizar Lisboa, em grandiosidades aparentemente modernas mas velhas, de fragilização de tecidos sociais e urbanos, de ataques às memórias e patrimónios.
Isso acontece nas propostas que vão de espúrios hotéis de charme a remendos como o projecto de um edifício no Rato, da interrupção da circulação e ocupação brutal – e que nunca imaginaríamos – da Avenida Infante D. Henrique na zona da Matinha, que irá acentuar o desastre imenso da perda da memória do trabalho, da história de um povo que se fixou na zona oriental da cidade e que foi expulso para brotarem também coisas boas, claro que sim, pavilhões, jardins e outros espaços estimáveis, a par de construções sobre construções que alarmam cada vez mais quem comprou casas na EXPO e queria viver com espaço e vê agora que continua a crescer a construção especulativa e desarticulada e que finalmente acorda para o protesto, para a organização em defesa do pouco conforto e da pouca segurança que por lá restam.
Em Alcântara, configuram-se projectos de ocupação imobiliária que já envolvem a alienação de uma área de acostagem mais propícia a navios de grande calado, numa zona ribeirinha onde a Administração do Porto de Lisboa passa do oito para oitenta; onde, de um Estado dentro do Estado, como sempre foi no passado, arrogante perante Lisboa e o município, passou a servir interesses outros, desde logo da Liscont e da Mota Engil; e valerá a pena fazer as contas a quem vai realmente assumir os encargos das obras da futura carga, descarga e transporte de contentores em Alcântara, para perceber como se está a descapitalizar uma empresa com 350 trabalhadores, que tem já problemas de quebra de rentabilidade, devido à sujeição a que o Governo a obriga, de serventia a interesses que convirá analisar em profundidade desde logo na Assembleia Municipal e na Comissão Permanente para Acompanhamento da Gestão de Intervenção na Zona Ribeirinha de Lisboa.
Na zona da Rua Artilharia 1, prepara-se imobiliário de alta densidade e há a ameaça de construção de dois prédios de oito pisos na Rua José Gomes Ferreira, emparedando Campo de Ourique. Na Praça do Comércio há um abstruso anteprojecto que vem lançar a confusão na nossa vida de cidadãos de Lisboa; não é anteprojecto de praça, nem de nada que aproxime as pessoas da cidade, mas sim algo que dá sequência a um processo de afastamento, de rejeição e ausência, em vez de ser de aproximação, de convivialidade, de encontro entre gentes que vêm de todo o mundo e de todas as regiões do País e que ali se poderiam cruzar com a memória e a história desde logo dos descobrimentos, das partidas e chegadas, e que, afinal, se o anteprojecto avançasse, correriam o risco de se sentirem algures em África, na América ou num deserto sem oásis e estranhamente repartido.

Travar a política de direita

O que se preparou, nomeadamente para zonas emblemáticas da cidade, foi um trabalho que é assustador; que felizmente, para além da nossa intervenção de eleitos, mobiliza instituições, especialistas e grupos sociais interessados, que vão questionando e travando projectos como o da transformação do Tribunal da Boa-Hora num estranho hotel de charme; que vão defendendo connosco uma Lisboa que resta, como base futura de outros olhares, de outras inteligências e vontades, no sentido de dar bom senso e bom gosto à recuperação de Lisboa, a um planeamento e a projectos que nos façam sentir humanos e não extraterrestres subitamente caídos em qualquer lado que não reconhecemos, numa cidade que se desarticula e nos afasta do encontro e do prazer de viver com os outros.
É, sobretudo, essa herança do trabalho de António Costa e Manuel Salgado que nos preocupa. Foi invisível e começa a tornar-se francamente inquietante. Vai desde o acordo de encerramento de hospitais às pressões inegáveis do Governo para mudanças de uso de territórios que são públicos e patrimoniais e fazem a história de Lisboa todos os dias, numa perspectiva que o governo da Câmara Municipal não enfrenta publicamente nem combate, de venda de territórios para resolução do défice; défice esse que, afinal, volta a estar nos 6,83%, pelo menos, acompanhado de uma previsão de quebra do PIB por parte da OCDE que vai já nos 4,5%.
Daqui se retira também uma lição para Lisboa. É preciso combater políticas que delapidem o nosso património, que destruam sectores de trabalho e da produção real de riqueza, que levem ao desemprego, à falência de milhares e milhares de empresas, a problemas dramáticos das famílias, de dificuldades cada vez mais instaladas nas classes médias que um Partido Socialista diz defender; partido que se apregoa reformista e social-democrata, ideais que abandonou e abandona para aconchegar quem já está aconchegado em alta corrupção, com 25 mil milhões de euros para uma banca e para banqueiros que afinal não usam esses e outros milhões retirados aos orçamentos do Estado, ao bolso dos contribuintes e ao futuro do País, para ajudarem as empresas a salvar-se das falências, nem para ajudarem as famílias que perdem as casas que compraram ou que agora querem comprar e se vêem face a exigências injustas e especulativas.

Vale a pena lutar

Este é um ano marcado pela febre eleitoral, por projectos que foram e são apresentados e que assustam, mas que não passam disso, felizmente, de mera propaganda porque vão exactamente acontecer eleições para a Assembleia da República e para os órgãos municipais e de freguesia de Lisboa e muita coisa irá mudar.
Do nevoeiro actual e dos pesadelos que se configuram valerá a pena sair para novos desígnios e outros projectos, esses sim, a favor do povo de Lisboa e do futuro desta cidade que é necessário salvar de camartelos aparentemente modernos mas que só pensam em como agredir e esfriar, em como retirar gosto de viver, em como tornar tudo banal e esvaziador da vontade de intervir, de aprender e de lutar por um futuro melhor.
Cumprimos a nossa missão de eleitos municipais analisando, estudando, aprendendo com as populações da cidade. Não nos calaremos perante o que consideramos mal direccionado na enorme ambição de subverter, fragilizar e empobrecer. Preferimos continuar no caminho dos sinais que prenunciam outros mundos e nas vontades que cada vez mais nos acometem, face ao descalabro nacional e às ameaças de maior descaracterização de Lisboa.
Estamos abertos à reflexão, ao trabalho conjunto, aos contributos que todos podemos dar. No poder local, é essa nossa disponibilidade que leva à descoberta de caminhos diferentes e inovadores, no melhor sentido da história e do futuro.
Aqui estamos, na Câmara Municipal, na Assembleia Municipal, nas Juntas e Assembleias de Freguesia, para pensar e agir com todos os que amam Lisboa, na vida e na luta quotidiana por uma cidade melhor. Esta é a capital do País, que irá sobreviver, apesar das más políticas e de eleitos que olham sobranceiramente para Lisboa e não a conseguem ver nem entender, exactamente porque não descem à terra real e sacrificada desta cidade.


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