O caso do futuro volátil

Correia da Fonseca
Durante décadas, de facto durante toda a sua vida adulta até que aquilo aconteceu, trabalharam. Duramente, mas com alguma tranquilidade: tinham optado, prudentemente, por subscrever aquilo que por cá se chamaria PPR e por lá tinha uma qualquer outra designação. Por lá, isto é, pelos Estados Unidos da América, país onde estas cautelas de carácter previdencial muito se usaram e provavelmente continuam a usar-se na falta ou insuficiência de esquemas públicos que assegurem um final de vida minimamente tranquilo no plano financeiro. Estavam, pois, descansados enquanto trabalhavam: os anos iam deslizando, mas lá estava o PPR a garantir o futuro cada vez menos distante. O método era simples e óbvio: iam pagando agora, enquanto podiam, e quando chegasse o tempo certo o PPR retribuiria os seus cuidados garantindo-lhes uma velhice relativamente descuidada, tanto quanto a velhice o pode ser. Estavam mesmo tão descansados que alguns faziam planos para esse futuro. Uns iriam viver os últimos tempos para uma região rural que ao longo da vida sempre lhes acenara de longe sem que pudessem aproximar-se dela; outros viajariam até perto do mar, assim realizando um projecto antigo e sempre adiado; outros ficariam simplesmente perto da família, a ver os netos crescer e a cuidar deles tanto quanto fosse necessário e enquanto lhes fosse possível. Não eram, pois, sonhos enormes: eram projectos à medida do possível e construídos não sobre areias movediças mas sobre o que lhes era explicado pelos homens que, especialistas neste ramo de negócios, somavam à sabedoria e à experiência o conhecimento das técnicas de convencimento que afastariam dúvidas ou hesitações, se as houvesse. Na verdade, não as havia: era do conhecimento geral que os PPR tinham sido inventados para garantir segurança e felicidade na velhice de cada cidadão. Felizmente, nos Estados Unidos estas coisas eram sólidas porque os próprios Estados Unidos, a mais poderosa e livre nação do mundo, são incomparavelmente sólidos.

Um testemunho americano

Porém, um dia, dir-se-ia que praticamente de uma noite para a manhã seguinte, chegou a notícia de que uma enorme crise financeira estalara como uma tempestade súbita. Houve então quem corresse a ver como estava o seu PPR, se alguma coisa lhe acontecera, e verificasse que lhe acontecera tudo, isto é, que de facto o seu PPR já não existia porque o grupo empresarial robusto e de inteira confiança falira, tragado pelo abismo que se escancarara. Estavam destruídos todos os projectos; já não haveria velhice no campo, viagem até ao mar, últimos dias junto dos netos, já não haveria sequer a prevista tranquilidade. O que haveria, isso sim, era a condenação de trabalhar até ao fim da vida. E esta tristíssima história que aqui deixo em palavras breves não é coisa da minha invenção, maldade por mim inventada para denegrir o american way of life pelo menos em matéria previdencial: não é mais que um resumo nada agravado do que nos foi contado e explicado por uma reportagem da norte-americana CBS incluída recentemente no «60 Minutos» da SIC Notícias. Até resta acrescentar o que lá não foi dito: que mesmo o dramático recurso ao trabalho enquanto o corpo o permita ficou dependente da hipótese difícil de se encontrar emprego em tempos de desemprego em gigantesca dimensão. E que a alternativa é a miséria pura e simples. A reportagem não disse se nessas situações a taxa de suicídios sobe em flecha. Tal como a de diversos tipos de crime. Eu é que fiquei a perguntá-lo. Como, naturalmente, fiquei a perguntar pelos que entre nós desde há anos vêm promovendo publicitariamente os PPR locais, ofensiva que implica algum desdém pelo sistema público de prevenção financeira da velhice, que tende a apontar para a regra de ouro que recomenda «menos Estado» e metaforicamente cospe no chamado Modelo Social Europeu que, como se sabe mas é muito silenciado, resultou da luta dos trabalhadores ao longo de anos e anos. Para mais, acontece que a reportagem da CBS foi ter com o responsável pela maior parte dos PPR volatilizados e como que lhe pediu contas por tanta desgraça. E a resposta foi fácil: a culpa não era dele, era do Sistema Financeiro de que ele não é responsável. Pelos vistos inocentíssimo, o homem propõe-se reincidir. Impressiona como, perante testemunhos como este que a CBS prestou perante o mundo, ainda por cá há gente a olhar, enlevada e submissa, para o outro lado do Atlântico.


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