
- Nº 1849 (2009/05/7)
A máquina
Argumentos
Era o serão de Domingo, a TVI e a SIC davam-nos cantigas numa curiosa convergência temática, a RTP1 divertia-nos com comicidades em segunda dose, quando o canal História, só acessível a alguns, transmitiu consecutivamente dois documentários acerca do Iraque. Nunca me parece muito bonito vir para aqui referir-me a canais distribuídos por cabo e só olhados por minorias minguadas, fico com o vago sentimento de estar a fazer figura de elitista e sobretudo lembro-me do que me ensinou o Mário Castrim: que a crítica deve estar onde estão os olhos dos telespectadores. Porém, desta vez não resisti à tentação e optei pelo Iraque que, de resto, é o lugar onde bem se justifica que estejam o pensamento e a preocupação de qualquer sujeito atento ao tempo em que lhe calhou viver. Um dos documentários que o História escolhera não nos dava grandes novidades embora fosse todo ele constituído por imagens e informações terríveis. Dizia-nos o que também é possível saber pela imprensa escrita apesar de todas as filtragens: que a vida quotidiana no Iraque se tornou insuportável depois da intervenção «pacificadora» das forças militares dos Estados Unidos e dos países seus subalternos. Falava-nos do medo dos atentados que matam indiscriminadamente, dos raptos que são uma das várias faces dos antagonismos religiosos/políticos e ameaçam mesmo gente completamente alheia a qualquer facção. Contava-nos das crianças condenadas a uma clausura doméstica com o objectivo aliás de lhes defender a vida e que por isso estão mesmo impedidas de manter uma vida escolar que lhes seria fundamental. E, é claro, mostrava-nos imagens sanguinolentas da luta sem trincheiras nem limites de iraquianos contra iraquianos, de uns e de outros contra os militares ocupantes, tudo isto sem o menor vestígio razoável de fim à vista, enquanto os porta-vozes oficiais de Washington repetem, sem que ninguém confie sequer um poucochinho no que dizem, que as coisas estão agora melhor graças à invasão que foi justificada por imposturas há muito desmascaradas e agora está de tal modo atolada que nem o recuo parece possível. Aquele Iraque é, enfim, uma terra de pavor permanente que acompanha cada gesto, tanto que até os tempos duríssimos de Saddam Hussein, o ditador que foi instalado pelos Estados Unidos uns anos antes de se ter tornado um obstáculo a abater, suscitam agora alguma nostalgia. Talvez, pelo menos, porque então ainda estava vivo o milhão de crianças que as intervenções norte-americanas, as directamente militares e as outras, terão assassinado segundo várias fontes jornalísticas que há muito repetem a informação sem que se reflicta adequadamente no que ela significa.
O ódio que saiu do medo
Porém, o outro dos dois documentários naquela noite transmitidos pelo canal História saía da trágica rotina que nos informa de morte e de sangue. Falava-nos da máquina mediática que foi posta a funcionar nos Estados Unidos após o 11 de Setembro a fim de instalar na cabeça dos cidadãos norte-americanos o desejo de matar não apenas os supostos autores do atentado às Twin Towers mas também todos os que com eles se parecessem por também serem muçulmanos, isto é, o desejo da guerra a desencadear no Médio Oriente. Na raiz desse sentimento foi implantado o específico tipo de ódio que nasce directamente do medo: na opinião pública norte-americana estava instalada, imperceptível, a convicção de que aos Estados Unidos cabia o direito de matar em qualquer lugar do mundo, mas não sonhava sequer que a morte pudesse visitar o seu território. Em consequência, após o 11 de Setembro o medo explodiu feito ódio, os que se atreveram a opinar contra a guerra foram chamados de «traidores» e hostilizados de vários modos, tudo estimulado dia após dia pelos media com o natural e inevitável destaque para a televisão. Abundando na citação de casos concretos e comprovados, o documentário foi uma lição acerca da eficácia a que chegaram nos Estados Unidos actuais os velhos métodos de mentiras repetidas até que se tornem verdades e da construção de gigantescas imposturas que foram, há menos de um século, a grande contribuição do nazi Goebbels para a história da infâmia política. E é bom reter que esta lição acerca da máquina de enlouquecer cabeças interessa hoje a qualquer cidadão em qualquer lugar do mundo.
Correia da Fonseca