
- Nº 1846 (2009/04/16)
Álvaro Cunhal sobre Soeiro Pereira Gomes
Comunista dedicado e artista talentoso
Em Foco
No dia 7 de Dezembro de 1999, realizou-se em Alhandra uma sessão evocativa de Soeiro Pereira Gomes. Assinalava-se então os 50 anos da sua morte. Na ocasião, vários militantes comunistas daquela localidade contaram episódios passados envolvendo Soeiro Pereira Gomes, entre os quais se encontrava Álvaro Cunhal. Esta foi, aliás, uma das últimas iniciativas partidárias em que participou. Publicamos em seguida a intervenção proferida pelo histórico dirigente comunista:
Temos boas razões para estarmos aqui em Alhandra neste encontro evocativo de Soeiro Pereira Gomes.
A vida, a luta, a actividade revolucionária, a sua obra como escritor, estão inseparavelmente ligadas a esta terra.
1.
Soeiro Pereira Gomes teve destacado papel: na reorganização do Partido nos anos 40; nas grandes lutas operárias, em que participou, nomeadamente na greve de 8 e 9 de Maio de 1944; no desenvolvimento da organização, nomeadamente na Organização Regional do Ribatejo, que nesses anos dirigiu, como membro do Comité Central a partir do IV Congresso; no aprofundamento da ligação do Partido às massas e aos movimentos de massas; e na formação, organização, actividade e influência do movimento de unidade antifascista, nomeadamente do MUNAF e do MUD, tendo sido (como representante do Partido), membro das estruturas de direcção do movimento.
A sua actividade de militante na fábrica e nas lutas operárias tinha ainda outros aspectos de extraordinário valor: no movimento associativo; na realização de obras sociais; no desporto; na ligação estreita, actuante e solidária com as populações. Em 1941, nas operações de salvamento, quando do ciclone e inundações, com a sua coragem salvou muitas vidas. E ainda na actividade artística.
Soeiro Pereira Gomes foi um dos jovens escritores que constituíram o núcleo inicial da corrente literária que ficou conhecida com o nome de neo-realismo. Militante na fábrica, organizador de greves e outras lutas de operários e camponeses, dirigente do Partido, Soeiro Pereira Gomes era também um talentoso artista.
A sua obra de escritor é curta, mas valiosa e significativa. A par dos Contos Vermelhos, em que narra episódios da vida e da luta clandestina, e do romance Engrenagem, inspirado pela sua experiência na Cimento Tejo, a sua afirmação como romancista revela-se com Esteiros, escrito e editado antes de passar à clandestinidade.
Esteiros é uma comovente história da vida de crianças que (como ele escreveu) «nunca foram meninos». Uma história de trabalho infantil; de miséria; de picardias, de audácia e aventuras, transbordando qualquer coisa de heróico na vida dessas crianças.
Esteiros foi desde logo considerado e reconhecido como uma pequena obra-prima. Pediu-me que a ilustrasse e assim fiz, certo porém de que os modestos desenhos não eram dignos do valor da obra literária. Observação atenta da vida, Esteiros é um romance de profundos sentimentos de amor e ternura pelas crianças e transmite (sem o explicitar) a indignação pela exploração e miséria de que são vítimas.
Este romance traduz (não em termos de análise política, mas com igual força de expressão e convencimento) o humanismo dos ideais e da luta dos comunistas.
Ainda uma outra característica da personalidade de Soeiro Pereira Gomes. Além da dedicação, da coragem, da firmeza ideológica e da sua obra literária, deixou-nos um exemplo de particular relevo num comunista, sobretudo num dirigente comunista. Simples, modesto, dirigindo sem assomos de superioridade ou imposição, tratava os camaradas e as pessoas em geral com respeito e estima. Convivia fraternalmente com eles, ensinando e aprendendo com a vida e com os outros. São valores, com os quais, todos nós, na época, procurávamos aprender, e com os quais necessitamos de continuar a aprender. É um dos mais ricos elementos da herança que Soeiro Pereira Gomes nos deixou.
2.
Há porém ainda dois aspectos: um, a situação mundial que se vivia; outro de natureza ideológica, de que são inseparáveis o pensamento, actividade e a personalidade de Soeiro Pereira Gomes. Pouco se fala neles, mas eu gostaria de os abordar aqui convosco.
Para conhecer e compreender a orientação e acção do Partido nesses anos (e portanto também a vida militante de Soeiro Pereira Gomes) é indispensável ter em conta, a situação internacional que se vivia.
É uma verdade histórica que a Revolução de Outubro de 1917 e a formação da URSS tiveram influência determinante na criação do PCP. Desses acontecimentos o Partido recebeu o poderoso estímulo e a activa solidariedade da primeira Revolução (em milénios da história da Humanidade) que empreendeu a construção de uma sociedade sem explorados nem exploradores — uma sociedade socialista.
A União Soviética, nos anos 40, inspirava os trabalhadores do mundo pelas suas realizações na construção da nova sociedade e pelo seu papel na luta contra o fascismo que culminou com derrota do fascismo na II Guerra Mundial.
Nesses anos, mesmo quando os exércitos alemães avançavam irresistíveis, ocupavam a Europa, chegavam aos Pirenéus, e a Leste, invadiam a União Soviética chegavam às portas de Leninegrado, de Moscovo e Stalinegrado, mesmo então, nós aqui confiávamos na vitória militar da União Soviética, como determinante para a vitória final dos Aliados.
O Avante! dava notícias da guerra tendo como título da página «A URSS vencerá!». E Soeiro Pereira Gomes (como muitos outros militantes) tinha na parede um mapa da URSS, no qual, bandeiras presas com alfinetes marcavam a linha da frente, no avanço libertador do Exército Vermelho, até à tomada de Berlim, ao hastear da bandeira, com a foice e o martelo no alto do Reichstag e (como se dizia então) «até liquidar a fera no próprio covil».
É de lembrar que o Partido se encontrava então isolado do movimento comunista internacional, desde a ruptura das relações com a Internacional Comunista em 1938, por suspeitas da IC de provocação, no seguimento da fuga do Aljube de Francisco Paula de Oliveira (Pavel).
Em 1947 fui encarregado pelo Partido de tentar restabelecer essas relações. Levava também como tarefa (no caso de conseguir chegar à União Soviética) de solicitar aos camaradas que Soeiro Pereira Gomes (já então gravemente doente) fosse lá tratar-se.
A última vez que nos encontrámos foi em fins de 1947 (precisamente nas vésperas da minha partida). Foi em Salir do Porto (na baía de S. Martinho do Porto), onde então Soeiro Pereira Gomes vivia na clandestinidade. Estava escrevendo o seu romance Engrenagem que não viria a acabar.
Apesar de gravemente doente, mantinha o seu espírito militante, a sua esperança na vida e a sua confiança no futuro. Infelizmente a gravidade da doença e a dificuldade de ligações e viagens clandestinas não permitiram que fosse tratado.
Faleceu jovem, em 5 de Dezembro de 1949, com 40 anos de idade. A luta contra a morte não impediu que (até aos últimos dias de vida) continuasse confiante na vitória da causa comunista.
Ele, como muitos outros que deram tudo de si próprios na luta pela liberdade e por uma sociedade melhor ficaram pelo caminho. Vitimados pela doença. Ou mortos nas prisões. Ou assassinados pela PIDE. Não chegaram a viver a conquista da liberdade, a Revolução de Abril e suas exaltantes realizações, a instauração de um regime democrático.
Falando nós hoje aqui de Soeiro Pereira Gomes, creio ser justo e necessário não só lembrá-los, mas manter viva a gratidão que lhes devemos por tudo quanto deram para o bem dos trabalhadores, do povo, do País e pelo grande exemplo das suas vidas.
3.
Um último aspecto. Nesses anos foi de importância capital para a acção revolucionária do movimento comunista e do nosso Partido a consciência de que possuíamos a poderosa arma de uma teoria revolucionária que não só explicava o mundo, mas indicava como transformá-lo. Uma teoria anti-dogmática e criativa, a teoria revolucionária do proletariado, o marxismo-leninismo.
Teoria que assenta as suas raízes na prática revolucionária que se enriquece e desenvolve e actualiza dando respostas novas às novas situações, aos novos fenómenos, à evolução da sociedade, mas cujos princípios fundamentais relativos ao conhecimento da natureza e do mundo, à explicação do capitalismo e à necessidade e possibilidade da sua superação por uma sociedade socialista inspiravam (e, a meu ver, bom será que continuem a inspirar) as nossas análises e a nossa orientação.
Soeiro Pereira Gomes e outros dirigentes e quadros do Partido estudávamos as obras de Marx, de Engels, de Lénine e procurávamos, e encontrávamos nelas experiências e ensinamentos para o nosso pensamento e a nossa acção.
Partidos que, dizendo-se marxistas, riscaram do seu património a Revolução de 1917 e o pensamento e acção de Lénine, deixaram de ser marxistas. Alguns, liquidaram-se a si próprios e acabaram por desaparecer.
Estais certamente de acordo em que, quando actualmente se pergunta «O que é ser comunista hoje?» podemos responder (além de outras definições) que não pode intitular-se comunista quem de facto deixou de o ser.
Para nós, «ser comunista hoje» (frente às grandes transformações sociais e à ofensiva global do imperialismo) é saber encontrar o caminho da luta para a solução dos problemas da hora presente, e os previsíveis a curto prazo.
Para nós, a par da luta por uma viragem democrática e patriótica na política nacional e a par da luta contra a ofensiva global do imperialismo; é também tarefa da nossa natureza e identidade continuar com confiança a luta por uma sociedade socialista, assinalando as lições do passado; mantendo-nos dignos de gerações e gerações de comunistas que (como Soeiro Pereira Gomes) consagraram suas vidas à luta pelos nossos ideais, prosseguindo com confiança a luta pela causa comunista.