Medo e sabor
Diana Costa Mota
Lisboa
Aí pelo Verão de 1970, estava no Algarve quando um amigo de Lisboa telefona e diz que o João tinha sido preso pela PIDE. Este João era a minha única ligação ao Partido e eu, com pouco tempo de militante, não sabia o que fazer nestes casos. Depois de falar com uns «amigos» que só queriam nunca me ter conhecido para poder continuar a ser tranquilos intelectuais de esquerda, sem chatices, decidi que o melhor era ir conhecer Portugal.
Com a tua mãe, meti-me no 127, caminho de Beja, Évora, Portalegre, Guarda, Miranda do Douro, Bragança, Chaves, Braga e a descer até Lisboa. Viagem aparentemente de conhecimento do interior perdido, de curiosidade cultural, monumentos e gastronomia, que ainda não estava na moda há 30 anos. Realmente viagem de fuga à PIDE, ao medo. Eu tinha a sensação de que toda a PIDE andava à minha procura. Não seria pelo meu trabalho «heróico» no Partido (realmente bem pequeno), mas pelo medo que me invadia todas as horas do dia e todos os centímetros do corpo. Medo deles e de mim.
Para disfarçar, dormia em pousadas e comia em bons restaurantes. Fialho (Évora), Gabriela (Sendim), Sintra Transmontana (Vinhais), Jordão (Guimarães), Narcisa (Braga), Garrafão (Leça), Pedro dos Leitões (Mealhada), e outros de geografia do bem comer daqueles anos.
E perguntarás porque é que te conto isto tudo? É que eu, que já naquela altura gostava muito de comer e beber, não consigo recordar nenhum prato, nenhum vinho, não tenho gravado na memória gustativa nada daquelas duas semanas. Só sei onde estive e posso imaginar o que comi, mas o medo é o único que recordo.
Voltei a Lisboa, sempre a olhar para o lado, até que percebi que eu era para o fascismo uma mosquinha pequenina de que tomavam nota, mas que não merecia mais atenção.
Percebi também que o fascismo, pode matar até os prazeres mais inerentes ao homem, como comer, beber e, evidentemente, amar.
Isto quando se está só, porque quando a resistência está organizada e unida, este medo e fraqueza transformam-se em força com os mesmos temas: comer e beber. Recomendo-te a leitura do «Coruche à mesa» do grande e inesquecível José Labaredas (Assírio e Alvim, 1999) e sobretudo o relato «uma pescaria memorável».
Diana, conto-te tudo isto porque na vida temos que optar, tomar decisões. Hoje aparentemente, vivemos em «democracia», já que assim o diz o telejornal todos os dias. Mas realmente, vivemos numa falsa democracia, numa espécie de transição entre o fascismo salazarento (que já não lhes convém) e um novo fascismo bushiano/uessiano, a que nunca se chamará isso. Mas onde os ingredientes «globalização» e «pensamento único» (comida única – bebida única), «poder universal», são sinais claros que só os cegos ou os coniventes não querem ver.
Confio na tua capacidade de opção e de análise para distinguir entre os que parece que fazem e os que realmente fazem. Isto não vai melhorar porque «toda a malta já vê que é impossível que venha um tipo pior que o Bush». Só melhorará se pararmos os pés ao Bush, ao Schwarzenegger e a todos os Kissingers deste mundo.
Vejamos, querida filha, há duas hipóteses:
Uma é repetir a belíssima cena final de «Casablanca» e perante o amor impossível, num momento impossível dizer, como o Humphry Bogart e a Ingrid Bergman, «Sempre nos restará Paris». É lindo, mas não é real.
A outra é pôr ao lume, um tacho grande com azeite, cebola, tomate, pimento, beringela e cabacinha (alcunhado de «courgette» nos supermercados). Tudo cortadinho, tapa-se deixa-se estufar, sem água, lentamente, pelo menos quarenta minutos, até conseguir uma massa multicor de sabores misturados, mas não um puré. A isto chama-se na Mancha espanhola «pisto», prato pobre onde se abria um ovo e pronto. Hoje não pomos ovo. Vamos dar-lhe um toque patriótico – bacalhau (viva Portugal!!!). Umas postinhas não muito altas, para que se embebam bem do sabor vegetal e soltem um toque de sal. Já está. Um rosado frio ou um tinto do ano fresco completa a base objectiva desta segunda opção. É lindo, bom e real.
Come-se, bebe-se, sentem-se e arquivam-se na memória os distintos sabores e depois discutimos, sem medo, sem raiva, como, com quem, de que maneira, se luta a favor da beleza e da humanidade, ou seja contra os actuais reis do mundo.
Sabendo que sabes cozinhar, e tendo a certeza de que escolherás a segunda possibilidade, esperamos o teu convite. Eu e a Luz levamos o vinho. Vamos vencer o medo. Confio em ti.
Beijo-te.
Lisboa
Aí pelo Verão de 1970, estava no Algarve quando um amigo de Lisboa telefona e diz que o João tinha sido preso pela PIDE. Este João era a minha única ligação ao Partido e eu, com pouco tempo de militante, não sabia o que fazer nestes casos. Depois de falar com uns «amigos» que só queriam nunca me ter conhecido para poder continuar a ser tranquilos intelectuais de esquerda, sem chatices, decidi que o melhor era ir conhecer Portugal.
Com a tua mãe, meti-me no 127, caminho de Beja, Évora, Portalegre, Guarda, Miranda do Douro, Bragança, Chaves, Braga e a descer até Lisboa. Viagem aparentemente de conhecimento do interior perdido, de curiosidade cultural, monumentos e gastronomia, que ainda não estava na moda há 30 anos. Realmente viagem de fuga à PIDE, ao medo. Eu tinha a sensação de que toda a PIDE andava à minha procura. Não seria pelo meu trabalho «heróico» no Partido (realmente bem pequeno), mas pelo medo que me invadia todas as horas do dia e todos os centímetros do corpo. Medo deles e de mim.
Para disfarçar, dormia em pousadas e comia em bons restaurantes. Fialho (Évora), Gabriela (Sendim), Sintra Transmontana (Vinhais), Jordão (Guimarães), Narcisa (Braga), Garrafão (Leça), Pedro dos Leitões (Mealhada), e outros de geografia do bem comer daqueles anos.
E perguntarás porque é que te conto isto tudo? É que eu, que já naquela altura gostava muito de comer e beber, não consigo recordar nenhum prato, nenhum vinho, não tenho gravado na memória gustativa nada daquelas duas semanas. Só sei onde estive e posso imaginar o que comi, mas o medo é o único que recordo.
Voltei a Lisboa, sempre a olhar para o lado, até que percebi que eu era para o fascismo uma mosquinha pequenina de que tomavam nota, mas que não merecia mais atenção.
Percebi também que o fascismo, pode matar até os prazeres mais inerentes ao homem, como comer, beber e, evidentemente, amar.
Isto quando se está só, porque quando a resistência está organizada e unida, este medo e fraqueza transformam-se em força com os mesmos temas: comer e beber. Recomendo-te a leitura do «Coruche à mesa» do grande e inesquecível José Labaredas (Assírio e Alvim, 1999) e sobretudo o relato «uma pescaria memorável».
Diana, conto-te tudo isto porque na vida temos que optar, tomar decisões. Hoje aparentemente, vivemos em «democracia», já que assim o diz o telejornal todos os dias. Mas realmente, vivemos numa falsa democracia, numa espécie de transição entre o fascismo salazarento (que já não lhes convém) e um novo fascismo bushiano/uessiano, a que nunca se chamará isso. Mas onde os ingredientes «globalização» e «pensamento único» (comida única – bebida única), «poder universal», são sinais claros que só os cegos ou os coniventes não querem ver.
Confio na tua capacidade de opção e de análise para distinguir entre os que parece que fazem e os que realmente fazem. Isto não vai melhorar porque «toda a malta já vê que é impossível que venha um tipo pior que o Bush». Só melhorará se pararmos os pés ao Bush, ao Schwarzenegger e a todos os Kissingers deste mundo.
Vejamos, querida filha, há duas hipóteses:
Uma é repetir a belíssima cena final de «Casablanca» e perante o amor impossível, num momento impossível dizer, como o Humphry Bogart e a Ingrid Bergman, «Sempre nos restará Paris». É lindo, mas não é real.
A outra é pôr ao lume, um tacho grande com azeite, cebola, tomate, pimento, beringela e cabacinha (alcunhado de «courgette» nos supermercados). Tudo cortadinho, tapa-se deixa-se estufar, sem água, lentamente, pelo menos quarenta minutos, até conseguir uma massa multicor de sabores misturados, mas não um puré. A isto chama-se na Mancha espanhola «pisto», prato pobre onde se abria um ovo e pronto. Hoje não pomos ovo. Vamos dar-lhe um toque patriótico – bacalhau (viva Portugal!!!). Umas postinhas não muito altas, para que se embebam bem do sabor vegetal e soltem um toque de sal. Já está. Um rosado frio ou um tinto do ano fresco completa a base objectiva desta segunda opção. É lindo, bom e real.
Come-se, bebe-se, sentem-se e arquivam-se na memória os distintos sabores e depois discutimos, sem medo, sem raiva, como, com quem, de que maneira, se luta a favor da beleza e da humanidade, ou seja contra os actuais reis do mundo.
Sabendo que sabes cozinhar, e tendo a certeza de que escolherás a segunda possibilidade, esperamos o teu convite. Eu e a Luz levamos o vinho. Vamos vencer o medo. Confio em ti.
Beijo-te.