- Nº 1838 (2009/02/19)

As confusões do desporto português

Argumentos

A análise do desporto que temos pode ser feita de várias formas, como é hábito nestas coisas. Ou se valorizam os resultados obtidos na alta competição – de expressão limitada, mas existentes nesta ou naquela modalidade e, de um modo geral, de forma pouco regular –, ou se olha para as dificuldades e se toma em consideração a enorme percentagem da população que nunca teve acesso a qualquer prática desportiva e, tudo o indica, continuará nessa situação.
Estamos perante a questão da garrafa meio cheia, que se pode lamentar por estar já meio vazia. Normalmente esta apreciação assume um carácter essencialmente político: os que estão no poder valorizam os «feitos» (traduzidos, normalmente, em medalhas); a oposição procura chamar a atenção para as enormes falhas.
Neste momento não interessa valorizar esta questão. Interessa é saber que a «crise» do associativismo, contraditória mas real, explica o que se passa com os clubes. A «crise» da escola e do ensino justifica o que acontece com a educação física e, ainda mais, com o desporto escolar.
Resta saber se se trata de duas crises, ou de dois aspectos de uma mesma crise. É evidente que é desta última situação que se trata que, por sua vez, faz parte de uma «crise» geral, de carácter social, cultural e político, em que o País se encontra mergulhado desde há muito, e que nos coloca na cauda da Europa em relação à maioria dos índices normalmente utilizados para avaliarem o grau de desenvolvimento dos diferentes países.
Seja como for, criou-se e mantém-se na opinião pública a noção de que os esporádicos resultados alcançados internacionalmente e que são obtidos essencialmente a partir do esforço individual dos atletas, dos seus treinadores e dirigentes associativos, são suficientes para o prestígio nacional. Desta forma se tenta estabelecer uma relação de causa e efeito entre os mais que magros meios fornecidos pelos governos às Federações Desportivas e estes resultados que, nalguns casos (especialmente no atletismo) chegam a atingir níveis internacionais de grande valor.
Para quem observa tudo isto com maior atenção aparece claramente que esta relação não tem razão de ser. É certo que a formação inicial ou básica, obtida por uma boa educação motora (ou educação física, ou educação pelo movimento, como se lhes queira chamar) constitui um factor determinante na evolução generalizada dos níveis de prestação futura dos actuais formandos. Mas não é menos certo que a alta competição constitui um subsistema individualizado, com uma lógica própria, exigindo meios específicos incompatíveis com o improviso e a pobreza dos meios. Os dois aspectos continuam à espera de resolução satisfatória.
Significa isto que a avaliação da intervenção no desporto, por parte da escola, e das acções de formação e treino dos clubes, não pode ser feita a partir de critérios técnicos. Por mais que a alguns pese, o que está em causa é a função educativa de uma e da outra das entidades. Naturalmente que esta noção de «função educativa» faz parte do mundo de coisas dificilmente avaliáveis e que têm pouco a ver com os resultados dos futuros campeões, apesar de neles influírem, como já se referiu.
Com todas as deficiências e dificuldades, a acção dos professores de educação física nas escolas tem sido extremamente valiosa. Infelizmente os preconceitos culturais, de raiz histórica e cultural, e a sua própria incapacidade em afirmarem socialmente a sua acção, impedem o grande público de se aperceber do valor de um trabalho que é realizado em condições, normalmente, precárias e, nalguns casos, inimagináveis. A apreciação dos «avaliadores públicos» só pretende desarmar a acção que deve ser realizada para corrigir a situação.
A situação dos treinadores não é diferente. Praticamente desconhecida pelo Estado, que não reconheceu até hoje valor ao seu trabalho em termos globais, é frequente deixarem-se cair no desalento e, muitos deles acabam por abandonar uma acção essencial para a Cultura Física do País. Com os educadores dá-se com frequência o mesmo, só que não abandonam porque não querem e não podem prescindir da sua profissão.
Na escola deveria estar uma das «partes» essenciais do «desporto para todos». Defender outra posição e pensar que a sua «essência» está na prática individual e auto-dirigida é um erro, se não fosse demagogia da mais grave. O clube, naturalmente com outras características para o seu funcionamento, deveria constituir uma das outras «partes» essenciais. A acção das duas instituições deveria completar-se e não ignorar-se como continua a acontecer no presente.
Além destas, outras «partes» existem como a do sector do trabalho, das Forças Armadas, dos «deficientes», etc., que como bem se sabe estão longe de preencher as funções que lhes deveriam caber nesta questão.
O que aqui nos interessa focar é a gravidade de uma situação em que os critérios de avaliação se referem aos aspectos meramente técnicos e uma relação puramente mecanicista da prática de massa com a elite. Ela explica, em grande parte, que os governos venham a investir fundamentalmente na alta competição pois que, obtidos aí alguns resultados, facilmente se chega à conclusão que os professores de educação física, os técnicos desportivos e os dirigentes associativos não têm razão nas suas reivindicações. Pior ainda: estas reivindicações aparecem aos olhos do público como descabidas e injustificáveis. As escolas não fazem mais porque não querem, e quanto aos clubes, a percepção da sua função social passa completamente despercebida, ainda por cima quando o próprio Poder aconselha a que se transformem em empresas.
A situação é grave porque atinge, dentro da totalidade da população, o seu sector mais sensível: a criança e o jovem. Mas, dentro deste grupo, os mais directamente atingidos são os que possuem menor capacidade financeira e nível de vida mais baixo.

A. Mello de Carvalho