Bernardino Soares em entrevista ao Avante!

OE de 2009 não responde à crise nem às necessidades do povo

Está em curso deste ontem, no Parlamento, prosseguindo hoje e amanhã, o debate na generalidade do Orçamento do Estado para 2009. Para o PCP este é um documento que não combate a crise nem defende as famílias, não respeita reformados e pensionistas, além de revelar desprezo por quem trabalha. Nesta entrevista ao Avante!, Bernardino Soares, presidente do Grupo comunista, explica as razões que estão na base desta avaliação profundamente negativa sobre as opções do Governo, justificando a sua firme oposição e o consequente voto contra.

Depois do combate ao défice agora é a crise do capitalismo que serve de justificação para a política de direita

Este é o último OE da Legislatura. A proximidade de um novo ciclo eleitoral reflecte-se neste orçamento?

Trata-se sem dúvida de um orçamento que o Governo tenta lançar recorrendo a grandes doses de propaganda, com vista às eleições do próximo ano. Mas não são alteradas as orientações fundamentais dos anos anteriores e que são responsáveis pela situação a que o País chegou. É que o País já estava em crise antes do espoletar da crise do capitalismo a nível internacional.

A redução do défice e a chamada «consolidação orçamental» justificaram as políticas anti-sociais nestes anos de governo PS. Essa linha de orientação nevrálgica mantém-se neste OE?

É verdade. Continua a ser um aspecto central na orientação do Governo até porque lhe permite com isso justificar as suas orientações, como o desmantelamento da administração pública, as privatizações ou a restrição nas políticas sociais. E mais. O Governo vai afirmando com todo o desplante que esta política é a que lhe permite agora estar mais desafogado para algumas medidas, quando sabemos que na realidade estas medidas não alteram a profunda injustiça social que continua a ser uma característica nuclear do nosso País e que foi esta política a principal responsável pelo agravamento dessa injustiça. Mas com este orçamento inaugura-se uma nova linha de propaganda. Depois do combate ao défice agora é a crise do capitalismo que serve de justificação para a política de direita.

O Governo tem falado do OE como um instrumento apto a responder à crise e a defender as famílias e as empresas. Há alguma ponta de verdade ou é apenas a máquina de propaganda a funcionar a todo o gás?

Este orçamento continua a manter uma política profundamente negativa nos salários, nas pensões, a nível fiscal, no investimento e em geral em toda a política económica e social. É certo que o Governo tem anunciado um conjunto de medidas que, aliás, repete até à exaustão. Não sendo nenhuma delas decisiva, muitas não estão sequer no orçamento ou só terão efeitos daqui a muito tempo. E há outras que, pretensamente servindo para resolver problemas realmente sentidos pelas pessoas, são na realidade novas benesses ao grande capital.

Mas, concretamente, em relação ao universo das micro e pequenas empresas, o OE contém ou não medidas à altura dos seus problemas e da dimensão da crise que afecta esta fatia substancial do nosso tecido económico?

Apesar de muita propaganda, nem de perto nem de longe. A anunciada taxa reduzida de 12,5% de IRC para os primeiros 12 500 euros de lucro, é manifestamente insuficiente. É que para além de esta taxa ir também beneficiar naquele escalão as grandes empresas e para além de o efeito desta medida só se fazer sentir na cobrança do imposto em 2010, o fundamental é que a maioria das pequenas empresas nem sequer vai declarar lucros ou se os tiver serão bastante baixos. Para essas, esta medida é irrelevante. Para mais o Governo não mexe no pagamento especial por conta, nem na questão do IVA. O PCP anunciou já que irá propor a eliminação do PEC em 2009 para as empresas com volume de negócios inferior a 2 milhões de euros. Quanto ao IVA, no mínimo vamos retomar a proposta do ano passado de que pelo menos nos fornecimentos a entidades públicas as empresas de menor dimensão só estejam obrigadas à entrega do IVA quando houver efectivo pagamento. É curioso, aliás, que o PSD, que agora enche a boca de forma oportunista, até tendo em conta a sua política no governo, com as pequenas e médias empresas, não tenha votado a favor desta medida o ano passado.

Problema gravíssimo continua a ser o da elevada taxa de desemprego. O Governo estima 7,6% para 2009, valor igual ao previsto para este ano. Como é possível esta ordem de grandeza quando se sabe que haverá uma redução do crescimento do PIB?

Desde logo é preciso lembrar que estamos a falar de valores bem abaixo dos reais valores do desemprego, por via das opções estatísticas adoptadas. Na realidade o desemprego deve estar a aproximar-se cada vez mais da barreira dos 10%. Mas mesmo considerando esses dados, repare-se que em Maio deste ano, quando o Governo ainda previa um crescimento de 1,5% para 2008 e de 2% para 2009, o desemprego era estimado em 7,6% e 7,4%. Agora o crescimento é revisto fortemente em baixa e mesmo sabendo que esse factor é determinante para haver mais ou menos emprego, o Governo quer que acreditemos que o desemprego se vai manter este ano e no próximo nos mesmos 7,6%.

Questão recorrente nos últimos anos tem sido a da sistemática e deliberada subavaliação da taxa de inflação. Merece algum crédito a previsão de 2,5% apontada pelo Governo?

Este Governo, aliás como os anteriores, falhou sempre na previsão da inflação. Aliás mais do que falhar trata-se de subavaliar a inflação de forma a fundamentar actualizações mais baixas dos salários e das pensões, bem como dos escalões do IRS que os trabalhadores pagam e dos níveis de deduções admitidas. Nada nos garante que não estejamos a assistir a mais uma manobra para penalizar os rendimentos dos trabalhadores ao prever a baixa da inflação dos 2,9% deste ano para 2,5%.

Falemos agora de política fiscal. Há sinais que apontem no sentido de uma maior justiça fiscal ou mantêm-se as iniquidades do sistema?

Os traços gerais da injustiça fiscal mantém-se intactos. Os impostos indirectos, que se aplicam de forma muito mais indiferenciada a ricos e pobres, aumentam novamente o seu peso na receita fiscal. Entretanto as actualizações dos escalões de IRS com base na inflação prevista pelo Governo e ano após ano ultrapassada, têm vindo a consumir os salários dos trabalhadores. O nosso Partido já anunciou o aumento das deduções com a saúde a educação e as rendas de casa de forma acrescida nos escalões mais baixos. E ainda uma inovadora dedução das despesas com passes sociais e outros títulos de transporte, que são hoje uma fatia cada vez mais importante nos orçamentos familiares.

Mas quanto aos benefícios para os grandes grupos económicos, há marcha-atrás ou mantém-se no fundamental os seus ilegítimos privilégios?

Aí nada muda. O off-shore da Madeira continua a ter benefícios fiscais no valor de cerca de 1800 milhões de euros, o que significa que por lá passarão mais de 7200 milhões de euros para fugir ao fisco. A par disso continua a haver grandes benefícios fiscais para grandes grupos nacionais e multinacionais, como é o caso da GALP que vai beneficiar de 200 milhões em 2009. E a banca continua a ter taxas efectivas diminutas sobre lucros que continuam a ser significativos. Não se pense que as grandes empresas estão com prejuízos. Muitas aumentaram os lucros e as que não o fizeram apenas diminuíram o seu montante. Não tiveram prejuízos. E é por isso também que entendemos avançar no orçamento para 2009 com a introdução de um novo escalão de tributação no IRC, acima de 50 milhões de euros de lucro, com uma taxa de 30% e não 25% como actualmente.

E em matéria de privatizações, o que há a dizer?

É curioso falar disso no momento em que o Governo está a nacionalizar um banco em crise em consequência da especulação e da gestão danosa e irregular. Prova-se, aliás, mais uma vez o acerto da nossa proposta da Conferência Nacional sobre questões económicas e sociais, de que o Estado deve deter mais de 50% do sector financeiro. Mas o que é extraordinário é que o Governo, ao mesmo tempo que corre a nacionalizar o BPN, assume como objectivo continuar a privatizar empresas estratégicas e na maioria dos casos altamente lucrativas. Para 2009 prevê-se uma receita de privatizações da ordem dos 1200 milhões de euros, incluindo o que resta da GALP, a ANA, a TAP, a REN, a INAPA, entre outras.

Apresentado pelo Governo como uma medida salvadora e em favor das famílias é o Fundo de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional. Qual é o verdadeiro alcance desta medida?

Trata-se de verdadeiros paraísos fiscais para a banca e o sector imobiliário, onde vão poder limpar as suas carteiras de imóveis e empréstimos. Estes fundos vão ter isenção total, isto é imposto no IRS, IRC, IMI, IMT, imposto de selo e taxas de supervisão. E serão um negócio fantástico à custa de famílias desesperadas. Se não repare-se: as casas são vendidas ao fundo, passando o vendedor a arrendatário, podendo depois recomprá-las no prazo de mais ou menos dez anos. Mas não há nenhuma garantia sobre o preço de venda, sobre o montante da renda ou sobre o preço da revenda. Na prática os bancos, para além de resolverem o problema do crédito mal parado e de não pagarem impostos sobre a actividade imobiliária, compram pelo preço que determinarem casas de que tinham vindo a receber prestações mensais em geral com juros avultados; o produto dessa venda é-lhes entregue para amortização do empréstimo; passam a receber durante vários anos a renda que entenderem fixar, mesmo que seja em princípio abaixo da anterior prestação; e mais tarde podem vender novamente a casa com lucro ao arrendatário a quem a tinham comprado ou a outra pessoa, que muito provavelmente irá ter que contrair novo empréstimo que pagará durante mais umas décadas ao banco. E tudo isto porque o Governo não quer tomar medidas para obrigar a baixar a prestação da casa, tal como o PCP tem vindo a propor.

Em síntese, como defines este OE?

É um orçamento de continuidade, que não responde à crise e às necessidades do nosso povo e que a ser aplicado agravará as condições de vida da generalidade da população. Continua a primar pela desvalorização dos salários e das reformas pela obsessão do défice, pelo fraco investimento e pela injustiça fiscal.

Não é difícil concluir, por conseguinte, qual vai ser o sentido de voto da bancada comunista…

Não pode ser outro se não contra. É a mesma política de orçamentos anteriores e de governos anteriores. O mesmo favorecimento dos grandes interesses aos serviço dos quais o Governo põe os recursos do Estado - como no caso dos avales de 20 mil milhões de euros à banca ou da recente nacionalização de uma instituição financeira. Os mesmos recursos que nega para o desenvolvimento do País e para os salários, as pensões e a justiça social. É preciso rechaçar claramente esta política, venha ela a coberto do défice ou da crise do capitalismo. E é preciso também, para além de numerosas propostas concretas que certamente apresentaremos, continuar a demonstrar ao nosso povo, neste momento em que o capitalismo expõe tão claramente as suas contradições, que também para o nosso País é possível outra política e outro caminho. E que é com um PCP mais forte que o conquistamos.

Caminhar para a recessão

O OE, depois de o Governo ainda em Maio falar de dois por cento, aponta agora um crescimento económico de 0,6%. Não há aqui um problema de falta de rigor? Mais: é esta uma meta credível?

Esse é um dos aspectos que desmente a aparência de rigor com que o Governo gosta de apresentar este orçamento. Como é possível acreditar nessa previsão se o próprio orçamento prevê uma quebra de 50% das exportações e descidas acentuadas do consumo privado e da procura interna, ou do investimento global? Se os países de que a nossa economia mais depende estão com previsões muito abaixo, como vamos nós destacarmo-nos? É um logro total. Em 2009, o que é mesmo provável, e o Governo sabe bem disso, é que caminhemos para a recessão.

E quanto ao défice: é legítimo concluir que os 2,2% previstos significam que vamos continuar sob o efeito do garrote que corta no social e nos salários, travando, simultaneamente, a necessária dinamização da economia…

Sem dúvida. Note-se que, ao contrário do que o Governo pretendeu fazer crer, não há uma revisão em alta do défice. Pretende comparar com o défice de 1,5% para 2009, inscrito como previsão no programa de estabilidade e crescimento. Mas a comparação tem de ser feita com 2008. E em relação a 2008 o que o Governo propõe é o mesmo nível nominal de défice, que na prática aliás corresponde a uma restrição maior, mesmo considerando os dados do Governo, já que se prevê um crescimento menor. Para além disso essa previsão de défice assenta em perspectivas de receita fiscal irrealistas, como é o caso do aumento em 4,8% dos impostos indirectos.

O que é extraordinário é que o Governo não queira aproveitar, como outros estão a fazer, a margem de três por cento que o próprio Pacto de Estabilidade prevê…

E vangloria-se disso. Ainda na recente entrevista a uma rádio e um jornal, José Sócrates afirmou-se orgulhoso de Portugal ser dos poucos países da zona euro que não vai aumentar o défice. Isto é, enquanto todos os outros não desdenham aproveitar a margem que o próprio pacto de estabilidade (que continuamos a contestar) permite e ir até mais além, o nosso Governo, a braços com uma economia mais débil e dependente, quer ser o campeão da ortodoxia financeira.

Prossegue desvalorização dos salários

Como avalias a proposta de actualização salarial de 2,9% para os trabalhadores da administração pública? Repõe o seu poder de compra perdido?

É um falso aumento por três razões fundamentais. Em primeiro lugar porque como já disse, nada garante que a inflação fique abaixo desse nível; aliás este ano não ficará. Depois porque o Governo actualiza os escalões e as deduções do IRS em apenas 2,5%, o que, para muitos milhares de trabalhadores, quer dizer que vão ter o seu rendimento tributado por um escalão superior de imposto, consumindo-se assim pelo menos uma parte do aumento nominal. E finalmente porque os trabalhadores da administração pública têm vindo na última década a perder salário real e só em 2008 - ano em que o Governo prometeu que os compensaria caso a inflação fosse superior à prevista, o que não fez – perderam o dobro do que agora lhes é proposto de aumento nominal.

E quanto ao investimento, designadamente ao PIDDAC, é suficiente o aumento nominal de 13 %?

Esse crescimento nominal, fruto em grande parte do atraso deliberado da disponibilização das verbas do QREN, para que se concentrassem em 2009, deve ser visto realmente por comparação com o início da legislatura. Em relação ao orçamento de 2005 a diminuição do PIDDAC é de 48,2% e ele é inferior mesmo aos orçamentos de 2006 e 2007. Mas não tenhamos dúvidas que vamos ter um acentuar das inaugarações, lançamentos de projectos, anúncios, etc..

Mantém-se as pensões de miséria

Analisemos as prestações sociais. Os aumentos previstos dão resposta às magras pensões e aos elevados níveis de pobreza e de exclusão social?

Continuamos a ter uma política escandalosamente restritiva nesta área. A começar pelo subsídio de desemprego que, em tempos de crise e de aumento do número de desempregados, vai ver as suas verbas diminuídas em 11% em 2009. Teremos assim ainda mais desempregados sem subsídio de desemprego. Por outro lado este Governo condicionou em lei o aumento das pensões ao crescimento do PIB. Se o PIB cresce abaixo de 2% as pensões ou não crescem, caso das mais baixas, ou crescem abaixo da inflação. É um escândalo que vamos denunciar e combater no debate do orçamento.

O PCP denunciou com vigor a fórmula de cálculo das reformas, chamando a atenção para os prejuízos sofridos pelos que se reformaram depois de 1 de Janeiro de 2007. Parece que o Governo veio agora dar razão aos comunistas...

É verdade. Depois de ano e meio a negarem e a desmentirem, tiveram de introduzir no orçamento a correção que o PCP há muito vinha a reivindicar. Esta alteração tinha sido proposta já pelo PCP e mereceu o chumbo do PS. Só que mesmo assim não repõem toda a injustiça. É que não querem pagar, aos que se reformaram entretanto e vão ver as suas reformas recalculadas, os retroactivos do que lhes foi esbulhado. Serão cerca de 40 mil reformados, alguns dos quais com pequenas reformas, a quem foram retirados 28 milhões de euros que na nossa opinião têm de ser pagos.