Salários e despesas familiares

O difícil equilíbrio do quotidiano dos trabalhadores

Anselmo Dias
O salário e a pensão constituem dois pilares fundamentais em que assenta a estabilidade financeira (e/ou a falta dela) de cerca de 82% dos residentes em Portugal (atenção: estamos a referir o número de pessoas e não o volume de rendimentos). Dada a sua dimensão – do salário e da pensão – nunca é demais falar de cada um destes temas na justa medida em que cada um deles condiciona, não apenas o quotidiano, mas o próprio espaço temporal que vai desde o berço até ao caixão, condicionamento que tem, como uma moeda, duas faces: a que vive do lucro e a que vive do salário.
Falar de salário é, não só, falar de um montante em euros mas, sobretudo, falar de uma
relação pela qual um compra, como de uma mercadoria se tratasse, a força de trabalho de outro.
Este último, o trabalhador, no dizer de Karl Marx, troca «a sua mercadoria, a força de trabalho, pela mercadoria do capital, pelo dinheiro, e essa troca tem lugar numa determinada proporção» tendo em conta que um operário, numa qualquer fábrica, de uma qualquer indústria, não produz apenas artigos intermédios ou acabados, produz, também, capital, este, tanto maior quanto maior for o nível de exploração.
No seguimento deste raciocínio Karl Marx adianta que o patrão, ao retribuir o trabalhador por um certo salário mais não faz do que dar-lhe «uma certa quantidade de carne, de roupa, de lenha, de luz, etc», ou seja, apenas os «meios de subsistência em troca da sua força de trabalho» sob a forma de salário, raciocínio que conduz Karl Marx a essa importante descoberta científica que é o conceito de taxa de mais-valia.
Este nosso artigo não tem o objectivo de quantificar esta taxa (para o qual exortamos os nossos camaradas especialistas em ciência económica).
Este nosso artigo tem, apenas e só, o objectivo de suscitar uma reflexão em torno do salário e da sua tradução em meios de subsistência, de acordo com os dados disponíveis do Instituto Nacional de Estatística (INE), quanto à estrutura de despesas familiares.

Concelhos com elevada população
e com os mais baixos salários


Para efeito do estudo atrás referido, podíamos analisar todos os 308 concelhos do País, o que tornaria este artigo extremamente longo e de difícil leitura. Podíamos, também, num plano mais restrito, analisar as regiões com o maior número de concelhos com os mais baixos salários, embora pouco populosos, como são as regiões da Beira Interior, de Trás-os-Montes e do Minho. Em vez disso optámos por limitar a análise a alguns concelhos.
Que concelhos são esses? São os concelhos que, por um lado, têm uma elevada população e têm, por outro lado, os salários médios mais baixos. Referimo-nos aos 15 concelhos que, conjugadamente, têm mais de 40 000 habitantes e com médias salariais globais inferiores a 700 euros de ganho médio mensal, ou seja, a remuneração acrescida de subsídios e de trabalho extraordinário.
Por distritos, tais concelhos são os seguintes:
– Distrito de Braga: Guimarães, Barcelos, Fafe e Vila Verde.
– Distrito do Porto: Paredes, Penafiel, Santo Tirso, Póvoa de Varzim, Amarante, Felgueiras, Paços de Ferreira, Marco de Canaveses e Lousada.
– Distrito de Viana do Castelo: Ponte de Lima.
– Distrito de Vila Real: Chaves.
Estes concelhos abrangem uma população residente na ordem de um milhão de pessoas e cujos rendimentos provenientes do trabalho por conta de outrem do sector privado da economia usufruíam, apenas, (Outubro de 2005), entre um rendimento máximo médio de 694 euros em Santo Tirso, até aos 553 euros em Paços de Ferreira.
No conjunto deste universo vejamos dois exemplos tendo em conta a natureza e o nível de despesas correlacionadas com o salário. Escolhemos, para o efeito, Guimarães, o mais populoso de todos, com 162 572 habitantes e o concelho de Paços de Ferreira, o concelho que, inserido no lote dos concelhos com mais de 40 000 habitantes, tem o mais baixo salário médio, cerca de 553 euros.

Estrutura das despesas
familiares da Região Norte


De acordo com o INE, reportada à data dos salários atrás referidos (2005/2006), a estrutura de despesas da zona norte estava assim dividida:
– Habitação: despesas com água, electricidade e gás: 25,6%;
– Produtos alimentares e bebidas não alcoólicas: 16,9%;
– Transportes: 12,8%;
– Hotéis, restaurantes, cafés e similares: 11,1%;
– Saúde: 5,7%;
– Lazer, distracção e cultura: 5,4%;
– Móveis, artigos de decoração, equipamento doméstico: 4,8%;
– Vestuário e calçado: 4,4%;
– Comunicações: 2,8%;
– Bebidas alcoólicas, tabaco e narcóticos: 2,5%;
– Ensino: 1,8%;
– Outros bens e serviços: 6,4%.
Esta estrutura pode, naturalmente, corresponder ao universo global da população do norte, mas não corresponderá, de certeza absoluta, à natureza das despesas das famílias pobres e das famílias ricas. Neste aspecto o INE recuou relativamente ao que havia feito 5 anos atrás, o que significa que, aqui, copiando o Governo de José Sócrates, em vez de avançar fez marcha atrás na desagregação dos dados e no nível de informação, dificultando uma análise mais pormenorizada da realidade.
Esta crítica tem toda a razão de ser na medida em que, por exemplo, quanto mais pobre se é maior peso tem a despesa com a alimentação. O contrário também é verdadeiro, ou seja, as despesas com a alimentação, em termos relativos, diminui à medida que aumenta a riqueza das famílias.
Tudo isto para dizer o quê? Para dizer que, à falta de melhor, vamos trabalhar com os dados disponíveis, embora sabendo de antemão que a situação gravosa que iremos referir é bem pior do que aquela que emana da estrutura atrás referida.

A situação em Guimarães

Vejamos, então, o caso de um casal de operários, com um filho menor, a laborar em Guimarães, concelho tipicamente industrial.
De acordo com a estatística dos Quadros de Pessoal, um operário ganhava, em média, 697 euros, cabendo à sua companheira, também operária, um salário médio de 541 euros.
Isto significa que o rendimento bruto anual era de 17 332 euros. Vamos admitir, na melhor das hipóteses (com a qual não acreditamos) que este casal estava isento de pagamento de IRS e que suportava os 11% de desconto para a segurança social. Neste caso o rendimento líquido era de 15 425 euros, ou seja, 1102 euros por mês (em 14 mensalidades), ou seja, um rendimento per-capita familiar de 14,09 euros por dia, incluindo os subsídios de férias e de natal. Exactamente, cerca de quatorze euros por dia.
Se aplicássemos este valor à estrutura de despesas familiares atribuída à região Norte teríamos o seguinte resultado mensal:
– Habitação; 329 euros;
– Alimentação: 217 euros;
– Transportes: 165 euros;
– Hotéis, restaurantes, cafés e similares: 143 euros;
– Saúde: 73 euros;
– Lazer, distracção e cultura: 69 euros;
– Móveis, artigos de decoração, equipamento doméstico: 62 euros;
– Vestuário e calçado: 57 euros;
– Comunicações: 36 euros;
– Bebidas alcoólicas, tabaco e narcóticos: 32 euros;
– Ensino: 23 euros;
– Outros bens e serviços: 79 euros.
Destas despesas vejamos as três primeiras:
– Habitação: Este valor está muito dependente em função da natureza da habitação. Se for casa própria proveniente de um empréstimo, estaremos, neste caso, em presença de uma casa muito barata;
– Alimentação: O custo da alimentação desta família, incluindo as despesas com hotéis, restaurantes, cafés e similares a dividir por três e por dia dá o seguinte resultado: 4 euros!!!
– Transportes: Vamos admitir que este casal não tem viatura própria e que se desloca em transportes públicos no percurso casa-emprego e emprego-casa: O custo diário por cada um deles, na base de 22 dias úteis de trabalho, é de: 3,75 euros. Aos sábados, domingos e feriados, teriam de andar a pé.
Eis a realidade de uma família operária residente no concelho de Guimarães tendo por base os dados oficiais constantes nos Quadros de Pessoal enviados pelo patronato ao Ministério do Trabalho, bem como os dados oficiais divulgados pelo INE relativos à estrutura de despesas familiares.

A situação em Paços de Ferreira

Vejamos, agora, o caso de um casal de operários, com um filho menor, a laborar em Paços de Ferreira, o concelho com mais de 40 000 habitantes e com a média salarial mais baixa no universo em apreço e uma das mais baixas do continente, apenas superando os concelhos de Terras de Bouro, Freixo de Espada à Cinta e Mondim de Basto.
De acordo com a estatística dos Quadros de Pessoal, um operário ganhava, em média, 532 euros, cabendo à sua companheira, também operária, um salário médio de 477 euros.
Isto significa que o rendimento bruto anual era de 14 126 euros. Vamos admitir, na melhor das hipóteses (com a qual não acreditamos), que este casal estava isento de pagamento de IRS e que suportava os 11% de desconto para a segurança social. Neste caso o rendimento liquido era de 12 572 euros, ou seja, 898 euros por mês (em 14 mensalidades), ou seja, um rendimento per-capita familiar de 11,48 euros por dia, incluindo os subsídios de férias e de Natal. Exactamente, cerca de onze euros por dia.
Se aplicássemos este valor à estrutura de despesas familiares atribuída à região Norte, teríamos o seguinte resultado mensal:
– Habitação; 268 euros;
– Alimentação: 177 euros;
– Transportes: 134 euros;
– Hotéis, restaurantes, cafés e similares: 116 euros;
– Saúde: 60 euros
– Lazer, distracção e cultura: 57 euros;
– Móveis, artigos de decoração, equipamento doméstico: 50 euros;
– Vestuário e calçado: 46 euros;
– Comunicações: 29 euros;
– Bebidas alcoólicas, tabaco e narcóticos: 26 euros;
– Ensino: 19 euros;
– Outros bens e serviços: 67 euros.
Destas despesas vejamos as três primeiras:
– Habitação: Este valor está muito dependente em função da natureza da habitação. Se for casa própria proveniente de um empréstimo estaremos, neste caso, em presença de uma casa muito barata.
– Alimentação: O custo da alimentação desta família, incluindo as despesas com hotéis, restaurantes, cafés e similares a dividir por três e por dia dá o seguinte resultado: 3,26 euros!!! Só? Exactamente, 3,26 euros por dia.
– Transportes: Vamos admitir que este casal não tem viatura própria e que se desloca em transportes públicos no percurso casa-emprego e emprego-casa: O custo diário por cada um deles, na base de 22 dias úteis de trabalho, é de: 3,05 euros. Aos sábados, domingos e feriados, teriam de andar a pé.
Eis a realidade de uma família operária residente no concelho de Paços de Ferreira.
Eis a realidade que devia constar dos noticiários da televisão e dos restantes meios de comunicação social, bem como do software do computador Magalhães.
Eis a realidade de um concelho onde se praticam os mais baixos salários do País que, por essa razão, foi escolhido pela multinacional IKEA, quando o que Paços de Ferreira precisava - e precisa – é de indústrias com elevado valor acrescentado onde se pratiquem salários mais elevados. A este propósito, o da exploração de mão-de-obra barata, não podemos deixar passar em claro o investimento feito em Santo Tirso, outro concelho onde proliferam os baixos salários, escolhido, com pompa e circunstância, a par de muita demagogia, para sediar um local de trabalho destinado a cerca de 1200 telefonistas, eufemísticamente denominado de call-center onde centenas de jovens com o 12.º ano e muitos deles com licenciaturas estão condenados a receber, mensalmente, salários balizados entre os 600 a 700 euros.
Eis a política de direita em todo o seu esplendor: a perpetuação dos baixos salários, a pretexto, como referiu Karl Marx e passamos a citar: «Por isso, quanto menos tempo de formação um trabalho exige, menores serão os custos de produção do operário, mais baixo será o preço do seu trabalho, o seu salário. Nos ramos da indústria em que quase não se exige tempo de aprendizagem e a mera existência física do operário basta, os custos exigidos para a produção desse reduzem-se quase só às mercadorias exigidas para o manter vivo em condições de trabalhar

A dignificação salarial:
uma batalha quotidiana, sem rituais


A melhoria do salário é uma questão crucial, não apenas na vertente da sua valorização, mas, também, na vertente da acção política e ideológica.
A questão do salário – falamos em valorização e não em salário justo, porque no sistema vigente não há salários justos – é uma questão central porque, como dizia Karl Marx: «A força de trabalho é pois uma mercadoria que o seu proprietário, o operário assalariado, vende ao capital. Porque a vende ele? PARA VIVER». O destaque e o sublinhado são nossos.
Ora, como todos nós sabemos, a vida é um acontecimento contínuo que não se compadece com pausas e paragens.
Da mesma forma, a transformação do salário em meios de subsistência é, também, um acto contínuo sem o que a vida dos trabalhadores seria afectada.
É por isso que nós dizemos que a luta pela valorização salarial é uma luta constante, que, em todas as suas fases, obriga, numa perspectiva de classe, ao envolvimento dos trabalhadores e que não se limita, anualmente, como se de um ritual se tratasse, a reclamar, apenas, a sua actualização em função da taxa de inflação acrescida de umas pequenas décimas, desiderato, aliás, ao alcance de qualquer sindicato reformista.
O salário, ou seja, o preço da força de trabalho, atribuído pelo patronato, apenas contempla uma parte da riqueza criada pelos trabalhadores. A outra parte, o valor que corresponde à taxa de mais-valia, é transformada em capital. Esta parte é pertença dos trabalhadores. Temos que a reaver. Temos, para isso, que lutar. Lutar o tempo que for necessário.

Bibliografia: Trabalho Assalariado e Capital, de Karl Marx. Tomo I, Obras Escolhidas de Marx/Engels, Edições Avante, 1982.


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