A miragem

Correia da Fonseca
Os telespectadores portugueses, pelo menos os que têm acesso à televisão por cabo, puderam assistir à transmissão integral do primeiro debate entre os senadores McCain e Obama: os que não se sentiram suficientemente motivados para suportarem uma boa parte da madrugada sem dormir puderam acompanhar, no dia seguinte e a horas mais cordatas, a igualmente integral transmissão da gravação feita. Em qualquer dos casos, uma tradução simultânea, e porque simultânea com algumas naturais imperfeições, permitiu aos decerto quase todos que não entendem perfeitamente o inglês made in USA o entendimento do que diziam os candidatos. Sem que conheça números quanto às audiências de ambas as transmissões, a feita em directo e a diferida, é de crer que tenham atingido uma expressão compatível com o interesse que a próxima eleição para a presidência dos Estados Unidos tem compreensivelmente suscitado entre nós tal como, de resto, no mundo em geral. Bem se sabe da influência muitas vezes decisiva, e também execrável, que a acção dos Estados Unidos tem tido praticamente em todos os cantos do planeta, que a grande nação americana tem uma enorme capacidade para praticar o mal e que não parece hesitar muito perante o seu uso. De onde a natural ansiedade com que o processo eleitoral em curso está a ser acompanhado e também as expectativas esperançadas que a candidatura de Barack Obama tem suscitado. Porque Obama é afro-americano, tem uma avó em África e, ao que parece, um discurso em que é possível discernir um pendor dito à «esquerda», acenderam-se luzeiros de optimismo por esse planeta fora, parece que sobretudo na Europa. É verdade que a Europa real ou supostamente «de esquerda» já não tem as exigências que em tempos a orientavam nessa tarefa de reconhecer o que é de esquerda e o que não o é. Ainda assim, porém, percebe-se que muitos europeus se sintam possuídos pela ineficassíssima vontade de votar Obama. E, como se sabe, o dr. Soares até comparou o candidato do Partido Democrático a «uma lufada de ar fresco». O que se compreende por várias razões, entre as quais avultará a de que na sua idade se é muito sensível às menores aragens.

Ouvindo Barack Obama

Por mim, apesar de muito temeroso das correntes de ar, assisti ao debate McCain-Obama sem quaisquer medos mas também sem esperar que ele viesse confirmar ou mesmo apenas semear esperanças. Aliás, como em tempo mais oportuno aqui registei, não tenho sido optimista quanto às possibilidades de vitória de Obama, tendo até tecido para uso individual e próprio uma tosca «teoria da conspiração» segundo a qual a candidatura de um «negro» pelo Partido Democrata terá sido a melhor garantia de vitória para um candidato tão pouco brilhante quanto McCain, assim conseguindo o Partido Republicano (e os interesses de que é fachada) manter-se na Casa Branca. Mas o debate da passada sexta-feira permitiu sair dessa efabulação talvez um pouquinho desvairada para o terreno sólido das evidências. Ouvi com atenção, naturalmente, o senador McCain, nada nas suas palavras me tendo surpreendido porque nada de surpreendente esperava dele, mas ouvi com maior atenção o senador Barack Obama. E de entre tudo quanto ele disse, ouvi-o dizer, a propósito da chamada crise da Geórgia, que «a Rússia está muito agressiva». Acredito que Obama saiba que a Geórgia não se situa no mar das Antilhas (e que muito menos se chama Geórgia em homenagem a George Bush) e que apesar disso os Estados Unidos enviaram para lá navios da sua Coast Guard em reforço de outros estímulos de carácter político-militar. Acredito que ele, Obama, não ignore que há um consenso internacional, expresso ou implícito, que responsabiliza a Geórgia pela crise. Que, apesar disto, Obama venha acusar a Rússia de «agressiva», decerto porque Moscovo recusa agora a suserania de Washington aceite e até agradecida pelo saudoso Iéltsin, não tem nada a ver com lufadas de ar fresco. Para lá desta indicação, Obama sublinhou estar empenhado na captura do fugidio Ben Laden (pretexto para as agressões militares de Bush), deu sinais de futura cumplicidade quanto ao escandaloso comportamento de Israel, não indiciou ter um projecto de solução viável para o Iraque. Entender-se-á, assim, que ao olhar a sua imagem ao longo do debate eu tenha sido possuído pelo sentimento de estar a encarar o que para muitos é, infelizmente, uma miragem. E que não me tenha sentido refrescado pela aragem mais ligeira.


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