Bartolomeu dos Santos

Um artista do século

Manuel Augusto Araújo
Bartolomeu dos Santos, o Bartolomeu, o Barto era um homem extraordinário que quase até ao fim da sua vida a viveu com a mesma energia de um jovem acabado de entrar em rompante vigoroso na idade adulta. Extraordinário pelas memórias que não deixava armazenadas nas prateleiras, recuperando-as e transformando-as em sucessos na hora e no dia em que estava sentado e que partilhava entusiasmado para que nada se repetisse, tudo se transfigurasse e que muitas vezes acabasse por adquirir o registo de obra de arte.
Extraordinário pela cultura, na sua acepção mais ampla, e erudição que inscrevia discreta e naturalmente no seu quotidiano, pontuando o que dizia, o que produzia.
Extraordinário pela alegria de viver com que contaminava os lugares por onde passava, onde estava, abrindo janelas para as festas que espontaneamente aconteciam à sua volta que partilhava com os amigos, os muitos amigos que o acompanhavam nas suas aventuras qualquer que fosse a aventura, desde beber um copo, ouvir uma sinfonia, sonhar um projecto artístico, simplesmente falar de um acontecimento familiar, introduzindo sempre algo de invulgar mesmo na mais plana das trivialidades.
Extraordinário na compulsão com que coleccionava objectos, das mais diversas proveniências e teores, colecção que crescia desmesurada sem perder o rigor exaustivo de arquivo, bússola de deambulações fantásticas pelos labirintos da história e da cultura da Europa do século passado por onde tinha viajado desde a infância fazendo registos fotográficos, arquivando fragmentos materiais e imateriais que submetia à luz do dia para os tornar sujeitos activos do presente.
Extraordinário porque à sageza de saber que poucas coisas são essenciais à vida fazia da vida coisa essencial que merecia ser vivida.
Extraordinário pela obra artística que realizou e que contribuiu decisivamente para a autarcia mundial da gravura, pelo seu trabalho de mestre de várias gerações de artistas antes e depois de assumir, nos anos 60, a chefia do departamento de gravura da Slade School of Fine Arts, em Londres, e ser professor convidado nas mais consideradas escolas de artes das quatro partidas do mundo, do Japão aos Estados Unidos da América, da Alemanha ao Paquistão, da Suécia à China.

Uma inquietação sem limites

Bartolomeu dos Santos é o gravador português mais importante de sempre e um dos maiores gravadores da História de Arte Contemporânea. A sua obra é de grande singularidade no quadro actual. Percorre-a uma inquietação sem limites que o faz mergulhar na aventura do mundo para o interrogar e questionar em todos os azimutes. Propõe questões que problematizam as relações entre o mundo colectivo e o mundo individual, os encontros e desencontros do consciente e do subconsciente fluindo sem desfalecimentos na areia da ampulheta do tempo, «O tempo presente e o tempo passado / são, talvez, presente no tempo futuro / e o tempo futuro contido no tempo passado» (T.S.Elliot referido por Bartolomeu dos Santos). Do tempo exterior padronizado, medido normativamente e do tempo interior que se mede idiossincraticamente com a razão e com a paixão. Essa tessitura do tempo é sinalizada por Bartolomeu com obras de arte onde cintilam ideias, mistérios, memórias, homenagens, viagens, indignações, acusações. São uma volta ao mundo em todos os dias.
Não existem fronteiras entre Gutte Nacht, a pretexto da Viagem de Inverno uma homenagem vibrante a Schubert, e Um Amante e Zeloso da Pátria, ave de rapina ameaçando Portugal de Abril, ou entre as diversas gravuras inspiradas pela Ode Marítima ou a sublime Homenagem a Cesário Verde, onde as muitas referências literárias e visuais iluminam o retrato esbatido do poeta, e a Barca dos Loucos, O Guerreiro Lusitano ou as sequências de batalhas do exército de ocupação norte-americano no Iraque, uma tropa fandanga de maléfica rataria, irónica evocação do assexuado mickey mouse, que, sendo uma denúncia mais imediata e evidente do estado de guerra contínua de baixa intensidade com que o império agonizante e sem fim previsto procura assegurar o futuro, são sobretudo denúncias da imoralidade da mentira não só por violar a verdade mas, sobretudo, por se ter transformado na insolência arrogante de nos tomar por insensatos e imbecis, o que é claramente insuportável para o artista que nunca se cinde do homem comunista politicamente empenhado que, desde sempre, foi Bartolomeu.
E não existem fronteiras porque para Bartolomeu as obras de arte são na sua essência cosmopolitas, defendem a liberdade de espírito, o poder criador do indivíduo frente à tirania do gosto massificado, são parceiras das inovações das ciências e das técnicas, estão do lado dos valores democráticos e revolucionários. Obras de arte que, hoje como antigamente, devem ser um testemunho, não fugaz nem pobre, da vida em toda a sua dimensão.
Nos últimos anos Bartolomeu, sem abandonar a gravura, retomou os pincéis e começou a fabricar objectos, caixas onde fragmentos diversos eram trabalhados com minúcias relojoeiras, recuperando os ready-made dos acasos felizes para lhes dar consistência narrativa, iniciando uma espécie de ilustração das suas memórias que estava a reescrever em forma de poemas fragmentários, construindo a torre de babel da sua vida. Essa avidez por encontrar algo de solidamente novo a partir das técnicas que dominava com maestria encontra-se na obra pública que realizou, nomeadamente na estação dos metropolitanos de Lisboa, Entrecampos/Estação da Biblioteca e Tóquio, Estação de Neobashi em que grava pedra transpondo e adaptando, com resultados surpreendentes e que se tornaram paradigmáticos, as incisões em placas de metal com ácidos e pontas secas.
Foi este homem invulgar que morreu aos 77 anos com uma constelação de projectos entre mãos para acender no firmamento onde desde há muito tempo brilhava intensamente.
Todos os anos, no último sábado de Agosto coincidindo ou nos arredores do dia do seu aniversário, o Bartolomeu e a Fernanda juntavam num almoço um grupo de quase meia centena de amigos. A um núcleo central agregava-se outro grupo variável, limitação ditada pelo número de lugares à mesa. Há dez anos bebemos um copo pelo primeiro ausente, o José Cardoso Pires, depois pelo José Daniel Santa-Rita, pelo Sá Nogueira, pelo Manuel Brito. Este ano estaremos dispersos em muitas solidões da solidão maior em que o Bartolomeu nos deixou, bebendo um copo a uma memória que não se apaga nos muitos projectos que deixou para serem concretizados para lá da sua presença física.


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