A Igreja dos pobres e a globalização

Jorge Messias
As vertiginosas mudanças que se registam, dia a dia, hora a hora, no mundo da política e da economia, são por vezes pouco aparentes mas nem por isso menos reais.
Por exemplo, deixou subitamente de falar-se em globalização como projecto triunfal. Agora, quando o assunto é abordado, é para se deitar contas aos milhões que devem distribuir-se entre as vítimas do capitalismo para calar na multidão a voz sempre perigosa da indignação e da revolta.
Segundo o FMI, não se trata de uma simples crise cíclica do capital, mas de uma perturbação profunda de todo o sistema capitalista, com consequências difíceis de prever. A economia mundial vai, quase de certeza, entrar em recessão global entre 2008 e 2009, com descontrolo do aumento dos preços dos produtos de primeira necessidade, a subida em flecha do desemprego e o agravamento da dívida dos países pobres aos países ricos. Pelo contrário, as multinacionais aumentarão os já gigantescos lucros e escavarão ainda mais o fosso que separa ricos e pobres. Foi nisto em que deu a famosa «sociedade global da abundância».
Os números oficiais do desemprego em Portugal apontam actualmente para um número de desempregados da ordem dos 430 mil. Se a esta parcela juntarmos os mais de 500 mil trabalhadores a termo pagos a «recibos verdes» e entregues, sem direitos nem garantias, aos caprichos dos patrões; se tivermos em conta os 898 mil artífices que trabalham isolados e também são pagos a recibos verdes; e se adicionarmos o milhão de trabalhadores/empresários (PMEs) por conta própria, poderemos chegar ao resultado assustador de estar prestes a cair em situações de miséria cerca de metade da população activa portuguesa a qual, em 2007, segundo o INE, era de 5 587 300 de cidadãos. Total potencialmente ainda mais grave se pensarmos, em termos reais, que outros milhões de seres humanos – familiares, velhos, crianças, enfermos, dependentes – serão impiedosamente atingidos pela crise profunda do capitalismo.
O Estado português deixa andar, embora saiba que o País que é suposto governar não tem estruturas sócio-económicas que permitam atenuar o choque da recessão. O Governo português apenas procura reduzir os gastos e aumentar os lucros, como fazem os gestores de qualquer multinacional. Homens piedosos, como gostam de aparentar ser, os ministros deitam a sorte do povo para trás das costas. «O futuro a Deus pertence...»«.

A «Igreja dos pobres»«?...

Neste enredo de comédia, a Igreja desempenha um papel importante. Diz-se «Igreja dos pobres» mas, mesmo num cenário de desagregação social eminente, recusa-se a assumir um discurso claro e político. Quando fala em pobreza aponta para a justiça divina. Quando refere acção, dá a volta ao assunto e faz catequese. Amealha, como sempre fez, os lucros do negócio. Eis um exemplo escolhido à toa, só para ilustrar essa evidência.
A Conferência Episcopal proclamou aquelas atoardas que neste espaço já se referiram. O Estado português seria «militantemente ateu». Os bispos falaram então no divórcio, na comunicação social, na educação, na falta de regulamentação da concordata, etc. A resposta da Igreja não podia deixar de ser dura e frontal. Verdade seja dita, o bispo Jorge Ortiga, ao anunciar luta frontal com o Governo de Sócrates acrescentara: «frontalidade e... diálogo». Curiosamente, logo pareceu estranho que a CE tivesse deixado passar em claro uma clara razão de agravo recentemente sofrido pela Igreja: a escolha do Montijo para o novo aeroporto, em detrimento da Ota e da diocese de Fátima. Um prejuízo imenso para a fé católica. Os investimentos eclesiásticos no imobiliário e no turismo daquela região tinham sido gravemente prejudicados. Sem acesso por redes de auto-estradas, sem proximidade dos comboios de alta velocidade, sem a construção prevista de hotéis de turismo, sem a ponte, que iria ser do Santuário ?
Felizmente que o bom-senso prevaleceu. Entre a Igreja e o Governo manteve-se um diálogo discreto. Sócrates correu a Leiria para anunciar que juntava ao mapa das novas regiões turísticas um pólo autónomo para a região de Fátima. Comboios de alta velocidade e modernização das auto-estradas também ficavam garantidas. Foi então que, noutro lugar e a outra hora, a União das Misericórdias anunciou que iria investir milhões de euros no Turismo e nas Energias Renováveis. Os prejuízos serão recompensados.
As crises do capitalismo têm aspectos positivos para os ricos: compra-se em baixa, vende-se em alta. Os problemas do Santuário que opunham Sócrates à Igreja ficaram sanados. A diocese de Fátima (que é autónoma e responde directamente perante o papa) passou a contar com um pólo turístico também autónomo, financiado pelo Estado e pelas iniciativas privadas. O que também acontece com as Misericórdias, subsidiadas pelo orçamento público em mais de 30% dos seus activos. E surgem agora, nos tribunais, os pedidos de indemnizações por perdas e danos sofridos pelos proprietários que acreditaram, um dia, na tese do Aeroporto da Ota.
E os conflitos com o «ateísmo militante»? E a chamada «Igreja dos pobres»?
Passe-se uma esponja sobre o assunto. «Palavras, leva-as o vento»...


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