Entrevista com Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral do PCP

Combate às desigualdades é prioridade na África do Sul

Anabela Fino
A África do Sul vive tempos de mudança. Derrubado o regime de apartheid pela heróica luta do povo e dos trabalhadores sul-africanos sob a bandeira do Congresso Nacional Africano (ANC), o país enfrenta hoje contradições e problemas que a revolução libertadora ainda não foi capaz de resolver. «Num quadro de projecto de sociedade não se entende que se possa dissociar a democracia política da democracia económica e social», afirma Jerónimo de Sousa em entrevista ao Avante!, fazendo eco das preocupações do Partido Comunista Sul-Africano, enquanto parte integrante de uma aliança de conteúdo democrático, em continuar a sua luta de transformação social sem perder de vista no horizonte o socialismo.

«É profundamente injusto que a esmagadora maioria da população e especialmente os trabalhadores não sejam os principais beneficiários da evolução democrática»

O ANC tem sido alvo de críticas e mesmo de contestação quer por parte das organizações sindicais quer do Partido Comunista Sul-Africano. Isto significa que o exercício do poder pelo ANC não está a responder aos anseios da população?

Jerónimo de Sousa – Antes do mais, importa reconhecer a grande afirmação do ANC como força nacional que venceu as eleições em todas as nove províncias da África do Sul, com uma esmagadora maioria absoluta. Mas passou já um tempo suficientemente largo para que o combate às desigualdades e às injustiças tivesse tido uma evolução mais célere e positiva.
No último congresso do ANC – que como se sabe integra igualmente o COSATU (Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos) e o Partido Comunista Sul-Africano – uma das críticas mais fortes feitas pelo Partido Comunista Sul-Africano (PCSA) foi justamente a falta de resposta do governo a grandes questões laborais e sociais, nomeadamente no plano dos salários e dos direitos. Houve, é certo, uma evolução no plano da habitação – uma das mais graves carências da população –, mas subsistem atrasos significativos, com a economia a ser ainda muito determinada pelo grande capital. Nota-se, em particular quando saímos de Joanesburgo – fomos a duas ou três outras localidades – que a minoria branca continua a ter um poder real impeditivo de uma sociedade verdadeiramente multirracial. Em Port Elizabeth, por exemplo, nos restaurantes onde estivemos, os clientes eram todos brancos e os empregados negros e alguns brancos. Não é porque haja proibição de os negros lá irem...

É outra forma de discriminação, a discriminação económica...

Exactamente. Por isso a grande preocupação do PCSA é conseguir modificar este estado de coisas. Creio que existem condições para isso, pois com as alterações registadas no recente congresso do ANC, particularmente na sua direcção, incluindo a presidência, o Partido Comunista conseguiu mais espaço para afirmar as suas posições. A solução encontrada com a nova direcção e a escolha de Jacob Zuma tornou-se necessária pelo facto de o anterior presidente ter subestimado as preocupações sociais e ter permitido um statu quo inaceitável naquele país tendo em conta os valores, princípios e objectivos da revolução libertadora.

A propósito da eleição de Jacob Zuma, não podemos ignorar que ele foi apresentado pela imprensa como sendo um corrupto, a contas com a justiça...

Para se perceber isso é preciso lembrar em primeiro lugar que os grandes meios de comunicação social estão nas mãos do poder económico; em segundo lugar, ter presente que a Justiça sul-africana continuou nas mãos dos brancos, integrando muitas personalidades ligadas ao anterior regime do apartheid.
A posição do Partido Comunista Sul-Africano em relação a Zuma foi clara: necessidade do apuramento da verdade. Em relação a dois dos casos de que era acusado já se demonstrou ter-se tratado de uma campanha orquestrada, sem fundamento; quanto ao terceiro, está a decorrer o processo, que vai ter certamente esse apuramento. Daqui se pode concluir que a convergência de quem tem o poder económico, quem domina a comunicação social e quem tem o poder na Justiça pode desenvolver campanhas fortíssimas contra as soluções democráticas, contra as medidas que possam corresponder a um desenvolvimento da situação económica e social para bem do povo.

É interessante registar que o COSATU, organização que não se tem coibido de contestar, incluindo com greves, medidas tomadas pelo governo do ANC, apoiou fortemente a eleição de Zuma...

Do ponto de vista do COSATU, do ponto de vista político-sindical é profundamente injusto que a esmagadora maioria da população e especialmente os trabalhadores não sejam os principais beneficiários da evolução democrática, do desenvolvimento económico e social. Por exemplo, o PCSA vai desencadear uma campanha nacional contra a brutalidade dos aumentos na electricidade, que rondaram os 50 por cento. Tanto o PCSA como o COSATU vão desenvolver acções de massas contra esta medida. Pode dizer-se que há responsabilidades do sector privado, mas esta é uma matéria em que o poder central tinha capacidade e obrigação de intervir.
Creio que esta é a grande questão que está colocada na África do Sul. Não existe uma alternativa política ao ANC a não ser uma solução direitista, de retrocesso, mas simultaneamente há também esta contradição de governar para quê e para quem...

O que nos leva directamente para a questão da participação dos comunistas no poder no contexto de uma sociedade capitalista, como é o caso da África do Sul. Há aqui uma grande contradição, pois temos um partido que integra o poder e simultaneamente combate medidas tomadas por esse mesmo poder. Como é que analisas este «bico de obra», digamos assim?

Acho interessante a pergunta, pois foi um tema abordado nas conversações com o Secretário-Geral do PCSA, Blade Nzimade, tendo havido troca de opiniões e experiências baseadas nos nossos princípios. Eles sentem essa contradição e neste momento estão a levar a cabo uma grande discussão interna com vista a conseguir não só mais espaço para o Partido – acham fundamental que na relação de forças existente o Partido Comunista Sul-Africano tenha mais protagonismo – mas também a poderem, enquanto parte integrante de uma aliança de conteúdo democrático, continuar a sua luta de transformação social sem perder de vista no horizonte o socialismo, no quadro desta fase que consideram transitória.
No plano imediato, consideram fundamental que não basta haver apenas democracia política, tem também de haver democracia económica e social, como base indispensável para a construção de uma sociedade mais avançada, que é o socialismo.
Neste contexto, o que fazer? Retirar-se da aliança, conhecendo os perigos que existem por parte do poder económico, da direita e das forças do passado? E ficando, como é que mantêm vivo o seu projecto de transformação social?
Por isso manifestaram o seu interesse em conhecer melhor o nosso Partido, saber como fazemos, como pensamos, como nos organizamos.

E qual é a resposta para a pergunta?

(Risos...) Com certeza que no quadro do aprofundamento das nossas relações e das suas deslocações – em breve virão a Portugal, à Festa do Avante!, ao nosso Congresso – teremos oportunidade de falar. Mas os camaradas sul-africanos querem mesmo vir para falarmos durante muito tempo, nomeadamente sobre esta grande questão.

De facto esta é a questão que se coloca, a questão de fundo. Referiste o aumento brutal da electricidade, mas esse será apenas um dos aspectos E não se trata só do preço dos bens essenciais, trata-se de saber que tipo de sociedade e de modelo económico se define, em benefício de quem e com que objectivos... Quem é que detém as rédeas do poder?

Participámos num grande acontecimento, em que Zuma fez uma intervenção muito interessante colocando questões tão concretas como, por exemplo, garantir ao povo sul-africano que o ensino seja gratuito e sem discriminações de acesso desde o início da escola até à formação final...

O que não é o caso...

Actualmente ainda não. Outros objectivos são garantir a saúde e a segurança social como direitos do povo sul-africano.
Neste âmbito, importa sublinhar que o PCSA considera que se deve ir mais longe, designadamente no que respeita à consagração dos direitos dos trabalhadores. Como se sabe, na África do Sul existe uma classe operária muito grande, forte e combativa, nomeadamente no sector mineiro e no sector agrícola. Ora bem, não haverá efectivo progresso e justiça social se os trabalhadores não virem reconhecidos os seus direitos laborais e sociais.

Havendo uma força claramente progressista que está no poder, como se explica que os sectores chave da economia continuem a não estar nas mãos do Estado?

Não estão, de facto...

Nem há perspectiva de que isso venha a acontecer a médio prazo...

Neste momento, a luta do PCSA é a de impedir privatizações.

Isso significa que o problema de novas privatizações está na ordem do dia?

Esteve em cima da mesa, particularmente na área das comunicações. Foi pela intervenção do PCSA que se conseguiu impedir essa privatização. Noutros sectores, em especial na área mineira, houve uma «herança» que resultou das negociações e do período de transição que leva a que hoje continuem a ser grandes multinacionais a ter nas mãos as riquezas do país. O ouro, os diamantes... estão a ser explorados por essas empresas.
É uma situação, como disseste, que acaba por ser contraditória. Sem as alavancas fundamentais da economia, dificilmente existe um desenvolvimento social harmonioso e progressista.
Como nós próprios costumamos dizer, num quadro de projecto de sociedade não se entende que se possa dissociar a democracia política da democracia económica e social.

E as Forças Armadas, como se situam no meio disto tudo?

Não tivemos oportunidade de aprofundar a nossa observação nesse domínio, mas sente-se que não há um problema em relação às Forças Armadas. Agora, quanto aos seus comandos, não estou em condições de me pronunciar.
O que posso dizer é que quanto à segurança há problemas sérios. A criminalidade em Joanesburgo é uma realidade, em boa parte devida aos fenómenos migratórios. A procura da cidade por parte de muita gente, sem alternativas, sem emprego, é um factor do aumento da criminalidade.
Neste âmbito, tivemos oportunidade de esclarecer que não existe qualquer sentimento contra os portugueses, e que os lamentáveis casos de assassinatos que se têm registado se devem ao facto de serem dos sectores mais expostos, quer porque estão juntos às comunidades mais problemáticas quer porque se dedicam sobretudo às áreas do comércio e serviços.

Quando se fala das Forças Armadas pensa-se no equilíbrio de forças. Embora sabendo que as situações são distintas, é possível fazer um paralelo, por exemplo, ainda que no plano meramente teórico, entre a Venezuela e a África do Sul. Na Venezuela não existe, a nível do poder, uma força política estruturada com o peso e a influência do ANC, com as suas três componentes, e no entanto foi possível avançar com o controlo pelo Estado da principal riqueza do país, o petróleo.
Na África do Sul não está no horizonte a possibilidade de o Estado chamar a si o controlo das fontes de riqueza nacionais?


Não parecendo haver um problema de Defesa Nacional, também não me pareceu existirem condições para a tomada de decisões mais avançadas no plano económico.

Tanto a África do Sul como Angola têm vindo a assumir um papel crescente na tentativa de resolução de alguns dos conflitos existentes no continente africano, aparentemente sem grande sucesso. Como é que isso é entendido?

Creio que existe uma preocupação central de solidariedade intercontinental procurando impedir retrocessos históricos e visando garantir que são os africanos a resolver os problemas em África. A ideia central que prevalece, segundo o nosso ponto de vista e a nossa observação, é a de tentar que naquele continente tão martirizado as dificuldades internas não gerem a reconstituição de um poder colonialista, ainda que com novos contornos.

A ameaça do neocolonialismo paira no continente...

Precisamente. Um colonialismo de novo tipo, até mesmo tendo em conta as contradições que possam existir entre a União Europeia e os Estados Unidos. Os africanos sentem que se não conseguirem resolver os seus próprios problemas outros procurarão resolvê-los à luz dos seus interesses. Daí o esforço de diálogo, de intervenção e de procura de resolução dos conflitos, não com o sentido de ingerência, mas visando a defesa das soberanias nacionais.