A dieta

Correia da Fonseca
Na tarde do passado domingo, a TVI transmitiu um filme que trazia o título português de «O Medalhão». Manda a verdade dizer que não era melhor nem pior do que é costume relativamente aos filmes, que são sempre muitos, transmitidos nos fins-de-semana pela TVI, a SIC e a RTP1, com justo destaque para as duas operadoras privadas. Salvo algumas excepções, que as há, bem podemos usar para a sua caracterização o título de um velho filme, já que de filmes estamos a falar: são «feios, porcos e maus». Entenda-se que as suas fealdade e falta de higiene não deve aqui ser tomada em sentido literal, esteticamente até são geralmente cuidados embora sem extraordinários méritos e quanto ao resto o que pode inspirar repugnância são os seus conteúdos. Regressemos a «O Medalhão»: era o ponto de convergência da brutalidade, da irracionalidade e da estupidez batidas em castelo, como se diria se se tratasse da confecção de um outro tipo de empadão, esse na área da culinária. Poderá alegar-se que o caso não é assim tão importante, que a transmissão de filmes assim serve apenas para que se passe o tempo, tanto mais que numa tarde de domingo é suposto que haja mais tempo livre para passar. Porém, como bem sabe quem destas coisas queira saber, muitas vezes se começa por passar o tempo livre ouvindo e vendo estórias assim ou semelhantes e, afinal, com o tempo elas acabam por condicionar a maneira como se passa a vida. Isto de duas formas, pelo menos: pelos modelos de existência e comportamento que elas dão e pelos modelos de existência e comportamento que elas omitem. Expliquemo-nos. Como toda a gente percebe, embora muita gente o esqueça e alguma gente o esconda, a televisão é inevitavelmente uma indutora de convicções e comportamentos. Como aliás toda a comunicação, e com muito maior peso a comunicação de massas. É isso, aliás, que justifica a existência da publicidade nos media. Assim, a exibição de ficções onde a irracionalidade é apresentada como um valor e a brutalidade como uma rotina não só admissível mas também excitante e recomendável porque eficaz tem forçosamente de ter consequências sociais. Há já muito tempo, supõe-se que expressa ou implicitamente confrontado com este facto, o director de programas de uma estação privada de TV alegou que não cabe à televisão ser a «educadora do povo». Admitamos que é assim porque um favor concede-se a qualquer. Ainda assim, é preciso sublinhar que a questão maior é outra: é que não cabe, nem sequer é admissível, que a televisão seja a deseducadora do povo. O que pode dizer-se de uma forma mais nítida: não deve ser consentido que uma estação de TV, privada ou pública, venda a sanidade ética, psíquica e cultural de uma população por troca com receitas publicitárias supostamente mais abundantes quanto menos civilizada ou civilizante for a programação fornecida.

Um crime com vítimas

Chegando-se aqui, é quase inevitável que se faça uma espécie de vénia aos casos que recentemente mais êxito mediático tiveram e se diga, por exemplo, que a agora tão falada violência nas escolas provavelmente se teria fixado num tom menor se a TV proposta para consumo geral estimulasse um pouco a atenção pelos outros em vez do individualismo tendencialmente feroz, as vantagens da inteligência em vez dos êxitos da bruteza. Tenhamos, porém, a lucidez que nos lembre que a escola é apenas um lugar entre muitos outros nestas sociedades de facto educadas pela televisão, digamos que psicologicamente alimentadas por uma intoxicante dieta televisiva de que «O Medalhão» foi apenas um exemplo, mas que de facto está quase constantemente presente ao longo das emissões, sem que desta regra se excluam os telenoticiários e os momentos publicitários, bem antes pelo contrário. Contudo, é fundamental ter presente que essa dieta não é uma espécie de fada má que surgiu por geração espontânea e se introduziu na TV sem que ninguém o tenha querido: o crime que a TV hoje consubstancia e que se define duplamente, pelo mal que faz e pelo bem que se recusa a fazer embora o pudesse, tem autores, donos, responsáveis, objectivos. E, mais importante que tudo, vítimas. Que são as populações fascinadas ou apenas resignadas ao seu consumo. Que, em diversos graus e por variadas maneiras, somos todos nós, o que nos dá o direito e o dever de resistirmos. Tanto quanto possível, pelos meios que haveremos de descobrir, activamente.


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