O modelo

Correia da Fonseca
A primeira das reportagens que integraram o «60 Minutos» mais recentemente transmitido falava-nos da disputa entre Hillary Clinton e Barack Obama no Ohio. Não é questão que me interesse muito, como se sabe estou dispensado de votar num ou noutro, mas, já que estamos a falar nisso, sempre direi que me intriga o equilíbrio mantido entre os dois candidatos perante o eleitorado democrata, atribuível sobretudo, segundo me informaram a TV e outros media, ao inesperado volume de financiamentos que tem sido conseguido pela candidatura Obama. Que a senhora Hillary possa dispor de vultosos apoios não é nada que possa surpreender, já o mesmo acontecera com o marido, e não será arriscado dizer que, se não fosse o factor desfavorável de se tratar de uma mulher ,a conquista da presidência lhe estaria garantida, tanto mais que o já apurado candidato republicano não parece um grande trunfo. Eis, porém, que surgiu o fenómeno Obama a turvar a limpidez das previsões possíveis. É que Obama não apenas é coloured, tipo de homem que não era suposto agradar a multidões norte-americanas para instalar na Casa Branca (tanto mais que, segundo também nos dizem, a maioria dos afro-americanos prefere Hillary) como visita o seu avô no Quénia, isto é, mantém com a África da sua origem assumida proximidade. Sendo assim, pergunto-me por que aparente milagre acontece essa inesperada avalanche de dólares a fornecer uma surpreendente robustez financeira à sua candidatura e não encontro resposta. O que julgo entender, isso sim, é que o candidato McCain , que terá partido com escassas possibilidades de vitória, pode encontrar nesta acesa luta entre os dois pré-candidatos democratas uma interessante razão para ter esperança: quer venha a defrontar uma mulher ou um «negro», talvez a manutenção da presidência na tão desprestigiada mão do Partido Republicano surja com probabilidades que de outro modo não existiriam.

Uma tragédia americana

Porém, o que mais me pareceu significativo e revelador na referida reportagem incluída no «60 Minutos» não tinha relação directa com o resultado das próximas eleições presidenciais norte-americanas: aconteceu quando jornalista da CBS visitou uma família de eleitores no Ohio e com ela conversou acerca da sua projectada opção de voto. Ficámos então a saber que eram gente pelo menos parcialmente atingida pelo desemprego porque a indústria de papel, onde ao longo de gerações haviam encontrado trabalho os homens da família, havia sido deslocalizada para a China, atraída pelas vantagens do costume nestes casos. Assim, o desemprego passara a habitar aquela casa, e as palavras de algum optimismo quanto à recuperação de postos de trabalho não soavam especialmente convincentes, antes pelo contrário. Para agravar a situação, e muito, acontecia que a mulher do chefe da família estava atingida por esclerose múltipla. Perguntou o jornalista se tinham seguro de saúde. Que não, foi-lhe respondido com lágrimas nos olhos daquela gente que até então tinha dado sinais de ser forte perante a desgraça que lhe batera à porta. Não, porque protecção estatal contra a doença não havia por lá e porque nunca tinha havido dinheiro bastante para pagar um seguro privado de saúde. Ali estavam, pois, mulher, marido e mais família, amarrados à dupla calamidade da doença e do desemprego, aparentemente ao dispor da miséria e da morte, talvez da morte na miséria, porque aquela não é terra onde alguma vez tenha sido generalizada e consensual a convicção de que o Estado deve gerir a solidariedade entre os cidadãos, assumi-la, fazer dela ponto fundamental de uma sociedade civilizada. Porque, enfim, aquele não é um país onde alguma vez tenha sido implementado o agora tão frequentemente vilipendiado «Estado Providência». E , como seria inevitável, lembrei-me das muitas vozes que por cá se levantam e que a comunicação social dominante tantas vezes se aplica a ampliar. Garantem elas que essa função estatal é insustentável, está condenada à morte, digamos assim, porque o dinheiro não chega para tudo (e por isso há que abandonar ao seu destino os que não podem pagar cuidados privados de saúde). É, asseveram, a libertação do Estado de obrigações que não lhe podem caber e que de resto ele não pode suportar. É, pois, o modelo que preconizam De que, de passagem, o jornalista da CBS encontrou um eloquente resultado.


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