Lisboa de vermelho
A maré cheia que no sábado tingiu o Rossio de vermelho, quando mais 50 mil militantes comunistas e outros democratas o fizeram transbordar numa poderosa demonstração do seu empenho na defesa da liberdade e da democracia, não foi apenas o reafirmar da vitalidade do PCP. Foi também a confirmação, sem margem para dúvidas, de que os valores de Abril estão vivos e de que os comunistas e os outros democratas portugueses estão dispostos a lutar para os defender e aprofundar.
A luta em defesa da liberdade continua e há muita gente para a travar
Há mais de trinta anos que o PCP não promovia em nome próprio, uma manifestação. Fê-lo no passado sábado, 1 de Março, numa inédita acção de massas em defesa da liberdade e da democracia.
A resposta foi dada pela impressionante massa humana que, compreendendo a importância vital da luta em defesa do regime democrático, respondeu ao apelo do PCP e pintou de vermelho as ruas de Lisboa, num desfile como Lisboa há muito não via.
Quando o início da manifestação entrou no Rossio, começando a tornar rubra a velha praça, ainda muitos estavam a arrancar do Príncipe Real. Ao longo dos anos, já muitas manifestações tiveram aquele local como ponto de passagem ou de chegada, mas nenhuma como esta o fez transbordar assim. Para onde quer que se olhasse, e até onde a vista alcançava, era o vermelho ondulante das bandeiras do PCP que dominava.
Do palco, chegavam as palavras sempre actuais de Ary dos Santos: «Quantos somos? Como somos? / novos e velhos: iguais. / Sendo o que nós sempre fomos / seremos cada vez mais.» E os manifestantes não paravam de entrar na vermelha praça…
Ao longo do percurso – que se iniciou do Príncipe Real e desceu a Rua do Século em direcção ao Largo do Carmo, para em seguida rumar ao Rossio passando pela Praça da Figueira – ninguém ficava indiferente à passagem de tamanho cortejo. Uns, «conhecedores» do PCP apenas pelos meios de comunicação social e pelos generalizados preconceitos, surpreendiam-se com a dimensão da manifestação e o número de jovens (que eram «muitos, muitos mil para continuar Abril», como cantavam). Outros, entusiasmados com a sua vitalidade, não resistiam a saudar os manifestantes. Em resposta, eram incentivados a integrar o cortejo, o que muitos fizeram. De algumas janelas agitavam-se lenços e camisolas vermelhos em fraternas saudações.
Muitos mais que cinco mil!
Ao início da Rua do Século, junto ao Tribunal Constitucional, os militantes comunistas levantaram bem alto o seu cartão do Partido. E não foi preciso contar – nem tal teria sido possível, tantos os milhares e milhares de cartões orgulhosamente erguidos – para saber que foram mais, muito mais de cinco mil os militantes comunistas que por ali desfilaram durante mais de duas horas.
Com este gesto, repetido mais tarde na Praça do Rossio, os comunistas (e os outros, porque muitas mãos se ergueram solidariamente sem cartão) demonstraram o seu repúdio pela Lei dos Partidos e a sua determinação em decidirem eles mesmos da vida interna do seu Partido, sem quaisquer interferências.
Este era, porventura, um dos momentos mais esperados da manifestação. Ou não tivesse ela sido convocada aquando da decisão daquele tribunal de aplicar a exigência de prova de um número mínimo legal para a existência dos partidos políticos.
Mas a Marcha Liberdade e Democracia tinha outras causas. Em cartazes e faixas empunhadas pelos participantes, lembrava-se que o direito de manifestação se encontra garantido pelo artigo 45.º da Constituição da República, enquanto que o 55.º garante a liberdade sindical. Os manifestantes fizeram ainda questão de recordar que a segurança no emprego ou o direito à saúde e à educação se encontram inscritos na Lei Fundamental do País, nascida da Revolução de Abril.
No final, depois das intervenções e das actuações dos músicos Samuel e Manuel Pires da Rocha, o Rossio manteve-se vermelho ainda por algum tempo, com muitos milhares de pessoas saboreando a festa de quem partilha ideais e cimenta na camaradagem a força da luta.
A caminho dos autocarros que esperavam no Terreiro do Paço ou no Cais do Sodré, perante o olhar atónito dos turistas que não resistiam a captar com as máquinas fotográficas tão belo espectáculo, as bandeiras vermelhas continuaram a flutuar ao vento numa multiplicação de marchas, qual jogo de espelhos, que por momentos deram vida e cor às ruas da Baixa lisboeta.
No regresso a casa permanecia a convicção de que esta foi uma batalha importante, mas que muitas outras haverá ainda que travar em defesa das liberdades e da democracia. Uma certeza porém animava quantos viveram a maré cheia do Rossio: a certeza de que o PCP estará sempre na primeira linha desta luta, e de que os comunistas não baixarão nunca os braços quando se tratar de defender os interesses do povo e do País.
Impacto internacional
Antes e depois da marcha, o PCP recebeu muitas mensagens de alento e solidariedade com tão importante acção. Numa delas, datada de 28 de Fevereiro e enviada pelo Comité Central do Partido Comunista da Grécia, saudava-se os comunistas e progressistas que, com a sua presença na marcha, davam uma «massiva resposta ao quadro legal antidemocrático que tem sido construído – com os votos do PS e do PSD – relativamente às leis dos partidos e do seu financiamento».
O PC da Grécia realçava ainda que o «minar de direitos democráticos fundamentais, os constrangimentos adicionais aos sindicatos e às liberdades do povo constituem uma característica intrínseca da ofensiva do capital». Medidas semelhantes, lembrava, «estão também a ser promovidas na Grécia, bem como em toda a UE».
A concluir, os comunistas gregos sublinharam que «o combate pelas liberdades do povo é um elemento essencial da luta anti-imperialista. Está organicamente relacionada com a luta pelo progresso social e pelo socialismo». E destacaram que «a vossa luta é nossa também».
Jerónimo de Sousa no final da
Marcha Liberdade e Democracia
Retomar as alamedas de esperança
No final da Marcha, perante os mais de cinquenta mil militantes comunistas e outros democratas que enchiam a Praça do Rossio, o secretário-geral do Partido fez uma intervenção, que transcrevemos na íntegra.
Permitam-me que vos saúde. Que manifeste a minha admiração e alegria pelo nível e dimensão desta Marcha inédita, transformada numa torrente humana onde se sente o pulsar da inquietação face aos perigos e ameaças, do protesto e do descontentamento perante as injustiças, aliados à determinação e à confiança na luta pela liberdade e democracia. Admiração e alegria tanto mais sentidas quanto nos tempos que correm sopram os ventos avassaladores da ideologia dominante que nos convidam e empurram para o pântano do conformismo e fatalismo, da alternância sem alternativa, da interiorização nas consciências da ideia da inevitabilidade das injustiças e desigualdades, da negação de um Portugal desenvolvido e democrático que acreditamos ser possível com a vitória de Abril.
E aqui se expressou também da forma mais visível e genuína o direito à indignação.
O que estamos hoje aqui a dizer e a fazer resulta da avaliação que fazemos da situação nacional e do estado da democracia.
Se é verdade que, ao longo de mais de 30 anos, o regime democrático tem sido alvo de ataques por parte daqueles que nunca se conformaram com as transformações e realizações operadas com a Revolução de Abril, e posteriormente consagradas na Lei Fundamental, actualmente, com este Governo PS de José Sócrates, a diferença reside na dimensão e profundidade dessa ofensiva que não deixa intocável nenhuma das vertentes do regime democrático – a democracia económica, a democracia social, a democracia cultural e a democracia política. A própria soberania nacional (concebida como o reconhecimento do direito de cada povo decidir do seu devir colectivo) começa a ficar comprometida, com a perda e transferência de parte da soberania, envolvendo Portugal em conflitos e processos que negam o objectivo da defesa da paz como princípio e valor universal com o qual o povo português se identifica e a Constituição consagra.
No PCP mandam os seus militantes
Esta Marcha Liberdade e Democracia teve como mola impulsionadora o momento em que o Tribunal Constitucional decidiu executar uma norma da Lei dos Partido Políticos da autoria do PS e do PSD, que exigia a prova de um mínimo de 5 mil militantes e consequentemente a violação do princípio e do direito de privacidade dos cidadãos que livremente fazem as suas opções políticas e partidárias mas não podem ser sujeitos à devassa da sua ficha e opção partidária.
Tal intenção trouxe à actualidade não só este aspecto da Lei mas o seu conteúdo e objectivos em articulação com a Lei do Financiamento dos Partidos Políticos. Numa e noutra há um alvo preferencial: o PCP, a sua autonomia, as suas características, a sua natureza; e a sua maior realização política, cultural e popular: a Festa do Avante!.
Resultante do empenhamento, militância e contribuição das gerações de comunistas construímos este Partido da classe operária e dos trabalhadores, que assume como único compromisso a sua luta com os trabalhadores e o povo português, que recusa integrar o seu projecto emancipador e transformador, o seu posicionamento, a sua intervenção e organização em instrumentos do sistema capitalista formatados à medida dos seus interesses.
Como homens, mulheres e jovens livres não aceitamos que nos imponham um «modelo» único à sua imagem e semelhança, não aceitamos que aqueles que proclamam «menos Estado» queiram afinal impor e «estatizar» as nossas regras de funcionamento e organização.
Recusamos que o financiamento do Estado aos partidos políticos os transforme em «departamentos» do Estado. Aceitamos e propomos transparência e rigor nas contas, sem limitações à iniciativa própria de recolha de fundos, mas menos dependência das subvenções do Estado e consequentemente a redução das verbas.
Estareis de acordo que sejam estes princípios gerais a propor na Assembleia da República.
Constituição é ponto de partida
Alguns analistas e meios de comunicação social questionaram-nos sobre os objectivos desta Marcha. Se não estaríamos a exagerar quando alertamos para a necessidade de defender a liberdade e a democracia. É certo que existem concepções diferentes sobre a caracterização e conteúdo destas duas palavras e como se avaliam as consequências desta ofensiva em curso.
Sem abdicarmos do nosso projecto que define o regime democrático porque nos batemos, temos um ponto de partida e de referência: o regime democrático consagrado na Constituição da República, Constituição que, apesar de sucessivamente alterada e revista, continua a comportar uma concepção de democracia com vertentes inseparáveis no plano económico, político, social e cultural, e onde a liberdade assume um carácter intrínseco.
E é no confronto com a realidade, com a política que está a ser levada por diante, face ao que se inscreve e consagra na Lei Fundamental que a questão da democracia deve aqui ser colocada.
Na definição de democracia económica não se exige ao Governo que combata, recicle ou altere a natureza do poder económico que segue a sua génese exploradora, a sua ânsia do lucro sem limites. Poder económico que hoje reivindica a privatização de tudo o que possa dar lucro, que entende os direitos dos trabalhadores como um estorvo e a Constituição como um empecilho. Está na sua natureza!
O que a Constituição consagra e exige do Governo é que o poder económico não se sobreponha ao poder político, que coexistam os três sectores da economia dando prevalência à dinamização do sector público e o apoio às pequenas e médias empresas. O Governo não está «em cima do muro». Está cada vez mais submetido aos ditames dos poderosos, sobretudo pela sua prática e decisões políticas e económicas. O primeiro artigo da Constituição Económica consagra e obriga à sobreposição do poder político sobre o poder económico.
Governo do lado dos poderosos
No plano da democracia social está na lógica implacável do poder económico conseguir mais lucro com mais exploração e expropriações de direitos laborais e sociais. Está-lhe no sangue! Mas a Constituição Laboral, no capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias, estabelece a ideia e a garantia que o trabalho é em si um direito e sede de direitos, o reconhecimento jurídico-político dos direitos colectivos e de solidariedade e da sua ligação com a democracia política.
Que faz este Governo do PS? Nem sequer fica, nem poderia ficar, neutro. Deveria fazer opção clara do lado dos trabalhadores e dos seus direitos. Com o chamado «Livro Branco sobre o Código do Trabalho», coloca-se do lado de lá, do lado contrário dos constituintes e da Constituição que, no confronto dilemático entre os interesses do poder económico e os interesses e direitos dos trabalhadores, das classes e camadas antimonopolistas, fizeram uma opção de fundo.
Também na chamada reforma da Segurança Social, na saúde, na educação, a ofensiva caracteriza-se não só por exigir sacrifícios aos trabalhadores, aos reformados, às populações e deixar intocáveis os interesses dos poderosos, mas por tentar, pela via da privatização, transformar estas áreas sociais (reconhecidas pela Lei Fundamental como direitos universais) em áreas de negócio.
«Liberdade possível com autoridade necessária?»
Mas os trabalhadores e as populações reagiram, protestaram, lutaram e lutam em defesa dos seus interesses e direitos. E este Governo auto-proclamado de «moderno» recorreu à resposta clássica, com arrogância e autoritarismo, animado directa ou indirectamente pelo silêncio ou mesmo com intervenção, uma escalada de ataques às liberdades.
O exercício de direitos sindicais é coarctado e proibido em muitas empresas; o direito à greve ameaçado; piquetes de greve são dispersados com recurso a forças de segurança; dirigentes sindicais são expulsos; processos criminais são cada vez mais frequentes contra quem faz uso de direitos constitucionais, de que é exemplo o caso do dirigente sindical da construção, mármores e madeiras, por estar à frente de trabalhadores com salários em atraso e ilegal e arbitrariamente despedidos. Quem sofre a condenação sumária é o sindicalista e não o que violou o direito ao salário e ao emprego dos trabalhadores.
Um pouco por todo o País vão crescendo as limitações à liberdade de expressão e de propaganda, com regulamentos inconstitucionais e intromissões abusivas de diversas autoridades e instituições públicas ou privadas; multiplicam-se os casos de tentativas de limitação do direito de associação e de autonomia das organizações.
Crescem as intromissões na autonomia do Ministério Público; valoriza-se o facto de que as escutas telefónicas possam ser efectivadas sem mandato; às forças de segurança é-lhes dado, cada vez mais, o papel de reprimir e pressionar e não de prevenir; desvaloriza-se o papel da Polícia Judiciária; desenvolvem-se os traços de um Estado policial, num certo ressuscitar do critério que fez doutrina no tempo do fascismo, da «liberdade possível com a autoridade necessária».
Intimidação não dá resultado
Estes ataques à democracia política que se seguem à expropriação de direitos sociais conjugam-se com as tentativas e ensaios de alterações ao sistema eleitoral, com o objectivo claro de manipular o voto enquanto expressão eleitoral, mas que vão mais longe e visam condicionar a própria formação da vontade; restringir o leque de opções possíveis e impor por obra de engenharia eleitoral uma bipolarização que reduzisse a possibilidade de políticas alternativas e de uma alternativa política, não tanto de «partido único» mas de «dois partidos da política única» que já vigora há mais de 30 anos.
Citando Brecht: «Os poderosos fazem planos para 10 mil anos». Este Governo, e em particular o primeiro-ministro, do alto da sua olímpica arrogância, embevecido pelo apoio e aplauso dos poderosos, dos seus seguidores e clientelas que lhe auguravam a perpetuação do cargo, julgou que seria tão fácil proceder à demolição dos direitos sociais como descer a Avenida da Liberdade até aqui ao Rossio; que a arrogância e a intimidação, aliada à doutrina dominante das inevitabilidades e coberta com a propaganda, venceria resistências e esconderia a realidade de um país mais injusto, mais desigual, menos democrático.
Enganou-se! Contra a ideologia dominante das inevitabilidades, os trabalhadores e as populações, fustigados nos seus interesses e direitos, a partir dos seus problemas concretos e aspirações concretas, mostraram o seu descontentamento, elevaram o seu protesto, travaram e travam a luta.
Afirmação de confiança
O PCP agora, como sempre, lá esteve e está estimulando, mobilizando e solidarizando-se com justas causas, razões e direitos dos trabalhadores e do povo português.
Agora, como sempre, considerando a luta como chão mais sólido para travar o caminho a uma política que impede o progresso, a justiça social e uma vida melhor para o povo e para o País.
Único partido que se mantém fiel ao compromisso com os trabalhadores, a juventude, os reformados, os pequenos e médios empresários e agricultores!
Único partido que não aceita ser metido no mesmo saco de outros comprometidos com o grande capital, que não se fica pela reflexão e declaração que sossegam consciências mas que não resolvem nada.
Único Partido que propõe ao povo e ao País uma ruptura com esta política de desastre encetando um novo rumo que assuma a democracia, a liberdade, a justiça social, o desenvolvimento, a soberania nacional como pilares fundamentais.
Partido de causas justas mas Partido de projecto por uma democracia avançada e de luta pelo socialismo.
Vós que aqui estivestes nesta grande acção, nesta grande afirmação de esperança e confiança na liberdade e na democracia, sejam portadores da mensagem, sejam obreiros de um Partido mais forte e força alternativa para alcançar um futuro diferente onde voltem a residir e irradiar os ideais e valores de Abril. Que este Rossio a transbordar não seja ponto de chegada, mas de partida. Que cada um se dirija aos democratas, aos cidadãos preocupados com o estado da democracia e com o estado do País para, juntos com o PCP, retomar as alamedas da esperança.
Catarina Pereira, da JCP
«Não voltaremos atrás!»
Antes de Jerónimo de Sousa (ver páginas seguintes), coube a Catarina Pereira, da JCP intervir no final da marcha. A jovem comunista, perante os mais de 50 mil manifestantes que se concentravam na Praça do Rossio, denunciou as «limitações das práticas democráticas» que se vão desencadeando por parte deste Governo sobre aqueles que se agitam e protestam.
Após afirmar que os sectores juvenis também sentem estas limitações – na distribuição de documentos, em manifestações estudantis, em piquetes de greve ou em pinturas de murais – a dirigente da JCP lembrou que a Constituição reconhece a todos os cidadãos o «direito de manifestação e de propaganda», consagrando, por outro lado, que «as autoridades que impeçam ou tentem impedir (…) o exercício do direito de reunião incorrerão na pena do artigo 291.º do Código Penal e ficarão sujeitas a procedimento disciplinar».
Apesar disto, prosseguiu, «vão-se reproduzindo por todo o País cenas que vão desde a identificação de estudantes à porta das escolas à profunda ingerência na vida das Associações de Estudantes, por parte dos Conselhos Executivos, até à proibição de Reuniões Gerais de Alunos e a intimidação de todos os se oponham a estas medidas repressivas», o que deixa antever uma «orientação clara» do Governo. Também nas empresas se sucedem episódios semelhantes. «O grande capital e o Governo, e este, por meio da polícia, procuram intimidar dirigentes e activistas sindicais.»
Referindo-se às limitações à liberdade de propaganda, Catarina Pereira afirmou: «não queremos ser como personagens do belo romance de Jorge Amado, Os subterrâneos da liberdade: “o pequeno grupo marchando nas sombras, conduzindo as latas de piche e os pincéis, camaradas colocados nas extremidades da rua para dar aviso se aparecesse alguém, as inscrições rapidamente feitas, a foice e o martelo desenhados em dois traços”.»
Não voltaremos atrás, garantiu.
A resposta foi dada pela impressionante massa humana que, compreendendo a importância vital da luta em defesa do regime democrático, respondeu ao apelo do PCP e pintou de vermelho as ruas de Lisboa, num desfile como Lisboa há muito não via.
Quando o início da manifestação entrou no Rossio, começando a tornar rubra a velha praça, ainda muitos estavam a arrancar do Príncipe Real. Ao longo dos anos, já muitas manifestações tiveram aquele local como ponto de passagem ou de chegada, mas nenhuma como esta o fez transbordar assim. Para onde quer que se olhasse, e até onde a vista alcançava, era o vermelho ondulante das bandeiras do PCP que dominava.
Do palco, chegavam as palavras sempre actuais de Ary dos Santos: «Quantos somos? Como somos? / novos e velhos: iguais. / Sendo o que nós sempre fomos / seremos cada vez mais.» E os manifestantes não paravam de entrar na vermelha praça…
Ao longo do percurso – que se iniciou do Príncipe Real e desceu a Rua do Século em direcção ao Largo do Carmo, para em seguida rumar ao Rossio passando pela Praça da Figueira – ninguém ficava indiferente à passagem de tamanho cortejo. Uns, «conhecedores» do PCP apenas pelos meios de comunicação social e pelos generalizados preconceitos, surpreendiam-se com a dimensão da manifestação e o número de jovens (que eram «muitos, muitos mil para continuar Abril», como cantavam). Outros, entusiasmados com a sua vitalidade, não resistiam a saudar os manifestantes. Em resposta, eram incentivados a integrar o cortejo, o que muitos fizeram. De algumas janelas agitavam-se lenços e camisolas vermelhos em fraternas saudações.
Muitos mais que cinco mil!
Ao início da Rua do Século, junto ao Tribunal Constitucional, os militantes comunistas levantaram bem alto o seu cartão do Partido. E não foi preciso contar – nem tal teria sido possível, tantos os milhares e milhares de cartões orgulhosamente erguidos – para saber que foram mais, muito mais de cinco mil os militantes comunistas que por ali desfilaram durante mais de duas horas.
Com este gesto, repetido mais tarde na Praça do Rossio, os comunistas (e os outros, porque muitas mãos se ergueram solidariamente sem cartão) demonstraram o seu repúdio pela Lei dos Partidos e a sua determinação em decidirem eles mesmos da vida interna do seu Partido, sem quaisquer interferências.
Este era, porventura, um dos momentos mais esperados da manifestação. Ou não tivesse ela sido convocada aquando da decisão daquele tribunal de aplicar a exigência de prova de um número mínimo legal para a existência dos partidos políticos.
Mas a Marcha Liberdade e Democracia tinha outras causas. Em cartazes e faixas empunhadas pelos participantes, lembrava-se que o direito de manifestação se encontra garantido pelo artigo 45.º da Constituição da República, enquanto que o 55.º garante a liberdade sindical. Os manifestantes fizeram ainda questão de recordar que a segurança no emprego ou o direito à saúde e à educação se encontram inscritos na Lei Fundamental do País, nascida da Revolução de Abril.
No final, depois das intervenções e das actuações dos músicos Samuel e Manuel Pires da Rocha, o Rossio manteve-se vermelho ainda por algum tempo, com muitos milhares de pessoas saboreando a festa de quem partilha ideais e cimenta na camaradagem a força da luta.
A caminho dos autocarros que esperavam no Terreiro do Paço ou no Cais do Sodré, perante o olhar atónito dos turistas que não resistiam a captar com as máquinas fotográficas tão belo espectáculo, as bandeiras vermelhas continuaram a flutuar ao vento numa multiplicação de marchas, qual jogo de espelhos, que por momentos deram vida e cor às ruas da Baixa lisboeta.
No regresso a casa permanecia a convicção de que esta foi uma batalha importante, mas que muitas outras haverá ainda que travar em defesa das liberdades e da democracia. Uma certeza porém animava quantos viveram a maré cheia do Rossio: a certeza de que o PCP estará sempre na primeira linha desta luta, e de que os comunistas não baixarão nunca os braços quando se tratar de defender os interesses do povo e do País.
Impacto internacional
Antes e depois da marcha, o PCP recebeu muitas mensagens de alento e solidariedade com tão importante acção. Numa delas, datada de 28 de Fevereiro e enviada pelo Comité Central do Partido Comunista da Grécia, saudava-se os comunistas e progressistas que, com a sua presença na marcha, davam uma «massiva resposta ao quadro legal antidemocrático que tem sido construído – com os votos do PS e do PSD – relativamente às leis dos partidos e do seu financiamento».
O PC da Grécia realçava ainda que o «minar de direitos democráticos fundamentais, os constrangimentos adicionais aos sindicatos e às liberdades do povo constituem uma característica intrínseca da ofensiva do capital». Medidas semelhantes, lembrava, «estão também a ser promovidas na Grécia, bem como em toda a UE».
A concluir, os comunistas gregos sublinharam que «o combate pelas liberdades do povo é um elemento essencial da luta anti-imperialista. Está organicamente relacionada com a luta pelo progresso social e pelo socialismo». E destacaram que «a vossa luta é nossa também».
Jerónimo de Sousa no final da
Marcha Liberdade e Democracia
Retomar as alamedas de esperança
No final da Marcha, perante os mais de cinquenta mil militantes comunistas e outros democratas que enchiam a Praça do Rossio, o secretário-geral do Partido fez uma intervenção, que transcrevemos na íntegra.
Permitam-me que vos saúde. Que manifeste a minha admiração e alegria pelo nível e dimensão desta Marcha inédita, transformada numa torrente humana onde se sente o pulsar da inquietação face aos perigos e ameaças, do protesto e do descontentamento perante as injustiças, aliados à determinação e à confiança na luta pela liberdade e democracia. Admiração e alegria tanto mais sentidas quanto nos tempos que correm sopram os ventos avassaladores da ideologia dominante que nos convidam e empurram para o pântano do conformismo e fatalismo, da alternância sem alternativa, da interiorização nas consciências da ideia da inevitabilidade das injustiças e desigualdades, da negação de um Portugal desenvolvido e democrático que acreditamos ser possível com a vitória de Abril.
E aqui se expressou também da forma mais visível e genuína o direito à indignação.
O que estamos hoje aqui a dizer e a fazer resulta da avaliação que fazemos da situação nacional e do estado da democracia.
Se é verdade que, ao longo de mais de 30 anos, o regime democrático tem sido alvo de ataques por parte daqueles que nunca se conformaram com as transformações e realizações operadas com a Revolução de Abril, e posteriormente consagradas na Lei Fundamental, actualmente, com este Governo PS de José Sócrates, a diferença reside na dimensão e profundidade dessa ofensiva que não deixa intocável nenhuma das vertentes do regime democrático – a democracia económica, a democracia social, a democracia cultural e a democracia política. A própria soberania nacional (concebida como o reconhecimento do direito de cada povo decidir do seu devir colectivo) começa a ficar comprometida, com a perda e transferência de parte da soberania, envolvendo Portugal em conflitos e processos que negam o objectivo da defesa da paz como princípio e valor universal com o qual o povo português se identifica e a Constituição consagra.
No PCP mandam os seus militantes
Esta Marcha Liberdade e Democracia teve como mola impulsionadora o momento em que o Tribunal Constitucional decidiu executar uma norma da Lei dos Partido Políticos da autoria do PS e do PSD, que exigia a prova de um mínimo de 5 mil militantes e consequentemente a violação do princípio e do direito de privacidade dos cidadãos que livremente fazem as suas opções políticas e partidárias mas não podem ser sujeitos à devassa da sua ficha e opção partidária.
Tal intenção trouxe à actualidade não só este aspecto da Lei mas o seu conteúdo e objectivos em articulação com a Lei do Financiamento dos Partidos Políticos. Numa e noutra há um alvo preferencial: o PCP, a sua autonomia, as suas características, a sua natureza; e a sua maior realização política, cultural e popular: a Festa do Avante!.
Resultante do empenhamento, militância e contribuição das gerações de comunistas construímos este Partido da classe operária e dos trabalhadores, que assume como único compromisso a sua luta com os trabalhadores e o povo português, que recusa integrar o seu projecto emancipador e transformador, o seu posicionamento, a sua intervenção e organização em instrumentos do sistema capitalista formatados à medida dos seus interesses.
Como homens, mulheres e jovens livres não aceitamos que nos imponham um «modelo» único à sua imagem e semelhança, não aceitamos que aqueles que proclamam «menos Estado» queiram afinal impor e «estatizar» as nossas regras de funcionamento e organização.
Recusamos que o financiamento do Estado aos partidos políticos os transforme em «departamentos» do Estado. Aceitamos e propomos transparência e rigor nas contas, sem limitações à iniciativa própria de recolha de fundos, mas menos dependência das subvenções do Estado e consequentemente a redução das verbas.
Estareis de acordo que sejam estes princípios gerais a propor na Assembleia da República.
Constituição é ponto de partida
Alguns analistas e meios de comunicação social questionaram-nos sobre os objectivos desta Marcha. Se não estaríamos a exagerar quando alertamos para a necessidade de defender a liberdade e a democracia. É certo que existem concepções diferentes sobre a caracterização e conteúdo destas duas palavras e como se avaliam as consequências desta ofensiva em curso.
Sem abdicarmos do nosso projecto que define o regime democrático porque nos batemos, temos um ponto de partida e de referência: o regime democrático consagrado na Constituição da República, Constituição que, apesar de sucessivamente alterada e revista, continua a comportar uma concepção de democracia com vertentes inseparáveis no plano económico, político, social e cultural, e onde a liberdade assume um carácter intrínseco.
E é no confronto com a realidade, com a política que está a ser levada por diante, face ao que se inscreve e consagra na Lei Fundamental que a questão da democracia deve aqui ser colocada.
Na definição de democracia económica não se exige ao Governo que combata, recicle ou altere a natureza do poder económico que segue a sua génese exploradora, a sua ânsia do lucro sem limites. Poder económico que hoje reivindica a privatização de tudo o que possa dar lucro, que entende os direitos dos trabalhadores como um estorvo e a Constituição como um empecilho. Está na sua natureza!
O que a Constituição consagra e exige do Governo é que o poder económico não se sobreponha ao poder político, que coexistam os três sectores da economia dando prevalência à dinamização do sector público e o apoio às pequenas e médias empresas. O Governo não está «em cima do muro». Está cada vez mais submetido aos ditames dos poderosos, sobretudo pela sua prática e decisões políticas e económicas. O primeiro artigo da Constituição Económica consagra e obriga à sobreposição do poder político sobre o poder económico.
Governo do lado dos poderosos
No plano da democracia social está na lógica implacável do poder económico conseguir mais lucro com mais exploração e expropriações de direitos laborais e sociais. Está-lhe no sangue! Mas a Constituição Laboral, no capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias, estabelece a ideia e a garantia que o trabalho é em si um direito e sede de direitos, o reconhecimento jurídico-político dos direitos colectivos e de solidariedade e da sua ligação com a democracia política.
Que faz este Governo do PS? Nem sequer fica, nem poderia ficar, neutro. Deveria fazer opção clara do lado dos trabalhadores e dos seus direitos. Com o chamado «Livro Branco sobre o Código do Trabalho», coloca-se do lado de lá, do lado contrário dos constituintes e da Constituição que, no confronto dilemático entre os interesses do poder económico e os interesses e direitos dos trabalhadores, das classes e camadas antimonopolistas, fizeram uma opção de fundo.
Também na chamada reforma da Segurança Social, na saúde, na educação, a ofensiva caracteriza-se não só por exigir sacrifícios aos trabalhadores, aos reformados, às populações e deixar intocáveis os interesses dos poderosos, mas por tentar, pela via da privatização, transformar estas áreas sociais (reconhecidas pela Lei Fundamental como direitos universais) em áreas de negócio.
«Liberdade possível com autoridade necessária?»
Mas os trabalhadores e as populações reagiram, protestaram, lutaram e lutam em defesa dos seus interesses e direitos. E este Governo auto-proclamado de «moderno» recorreu à resposta clássica, com arrogância e autoritarismo, animado directa ou indirectamente pelo silêncio ou mesmo com intervenção, uma escalada de ataques às liberdades.
O exercício de direitos sindicais é coarctado e proibido em muitas empresas; o direito à greve ameaçado; piquetes de greve são dispersados com recurso a forças de segurança; dirigentes sindicais são expulsos; processos criminais são cada vez mais frequentes contra quem faz uso de direitos constitucionais, de que é exemplo o caso do dirigente sindical da construção, mármores e madeiras, por estar à frente de trabalhadores com salários em atraso e ilegal e arbitrariamente despedidos. Quem sofre a condenação sumária é o sindicalista e não o que violou o direito ao salário e ao emprego dos trabalhadores.
Um pouco por todo o País vão crescendo as limitações à liberdade de expressão e de propaganda, com regulamentos inconstitucionais e intromissões abusivas de diversas autoridades e instituições públicas ou privadas; multiplicam-se os casos de tentativas de limitação do direito de associação e de autonomia das organizações.
Crescem as intromissões na autonomia do Ministério Público; valoriza-se o facto de que as escutas telefónicas possam ser efectivadas sem mandato; às forças de segurança é-lhes dado, cada vez mais, o papel de reprimir e pressionar e não de prevenir; desvaloriza-se o papel da Polícia Judiciária; desenvolvem-se os traços de um Estado policial, num certo ressuscitar do critério que fez doutrina no tempo do fascismo, da «liberdade possível com a autoridade necessária».
Intimidação não dá resultado
Estes ataques à democracia política que se seguem à expropriação de direitos sociais conjugam-se com as tentativas e ensaios de alterações ao sistema eleitoral, com o objectivo claro de manipular o voto enquanto expressão eleitoral, mas que vão mais longe e visam condicionar a própria formação da vontade; restringir o leque de opções possíveis e impor por obra de engenharia eleitoral uma bipolarização que reduzisse a possibilidade de políticas alternativas e de uma alternativa política, não tanto de «partido único» mas de «dois partidos da política única» que já vigora há mais de 30 anos.
Citando Brecht: «Os poderosos fazem planos para 10 mil anos». Este Governo, e em particular o primeiro-ministro, do alto da sua olímpica arrogância, embevecido pelo apoio e aplauso dos poderosos, dos seus seguidores e clientelas que lhe auguravam a perpetuação do cargo, julgou que seria tão fácil proceder à demolição dos direitos sociais como descer a Avenida da Liberdade até aqui ao Rossio; que a arrogância e a intimidação, aliada à doutrina dominante das inevitabilidades e coberta com a propaganda, venceria resistências e esconderia a realidade de um país mais injusto, mais desigual, menos democrático.
Enganou-se! Contra a ideologia dominante das inevitabilidades, os trabalhadores e as populações, fustigados nos seus interesses e direitos, a partir dos seus problemas concretos e aspirações concretas, mostraram o seu descontentamento, elevaram o seu protesto, travaram e travam a luta.
Afirmação de confiança
O PCP agora, como sempre, lá esteve e está estimulando, mobilizando e solidarizando-se com justas causas, razões e direitos dos trabalhadores e do povo português.
Agora, como sempre, considerando a luta como chão mais sólido para travar o caminho a uma política que impede o progresso, a justiça social e uma vida melhor para o povo e para o País.
Único partido que se mantém fiel ao compromisso com os trabalhadores, a juventude, os reformados, os pequenos e médios empresários e agricultores!
Único partido que não aceita ser metido no mesmo saco de outros comprometidos com o grande capital, que não se fica pela reflexão e declaração que sossegam consciências mas que não resolvem nada.
Único Partido que propõe ao povo e ao País uma ruptura com esta política de desastre encetando um novo rumo que assuma a democracia, a liberdade, a justiça social, o desenvolvimento, a soberania nacional como pilares fundamentais.
Partido de causas justas mas Partido de projecto por uma democracia avançada e de luta pelo socialismo.
Vós que aqui estivestes nesta grande acção, nesta grande afirmação de esperança e confiança na liberdade e na democracia, sejam portadores da mensagem, sejam obreiros de um Partido mais forte e força alternativa para alcançar um futuro diferente onde voltem a residir e irradiar os ideais e valores de Abril. Que este Rossio a transbordar não seja ponto de chegada, mas de partida. Que cada um se dirija aos democratas, aos cidadãos preocupados com o estado da democracia e com o estado do País para, juntos com o PCP, retomar as alamedas da esperança.
Catarina Pereira, da JCP
«Não voltaremos atrás!»
Antes de Jerónimo de Sousa (ver páginas seguintes), coube a Catarina Pereira, da JCP intervir no final da marcha. A jovem comunista, perante os mais de 50 mil manifestantes que se concentravam na Praça do Rossio, denunciou as «limitações das práticas democráticas» que se vão desencadeando por parte deste Governo sobre aqueles que se agitam e protestam.
Após afirmar que os sectores juvenis também sentem estas limitações – na distribuição de documentos, em manifestações estudantis, em piquetes de greve ou em pinturas de murais – a dirigente da JCP lembrou que a Constituição reconhece a todos os cidadãos o «direito de manifestação e de propaganda», consagrando, por outro lado, que «as autoridades que impeçam ou tentem impedir (…) o exercício do direito de reunião incorrerão na pena do artigo 291.º do Código Penal e ficarão sujeitas a procedimento disciplinar».
Apesar disto, prosseguiu, «vão-se reproduzindo por todo o País cenas que vão desde a identificação de estudantes à porta das escolas à profunda ingerência na vida das Associações de Estudantes, por parte dos Conselhos Executivos, até à proibição de Reuniões Gerais de Alunos e a intimidação de todos os se oponham a estas medidas repressivas», o que deixa antever uma «orientação clara» do Governo. Também nas empresas se sucedem episódios semelhantes. «O grande capital e o Governo, e este, por meio da polícia, procuram intimidar dirigentes e activistas sindicais.»
Referindo-se às limitações à liberdade de propaganda, Catarina Pereira afirmou: «não queremos ser como personagens do belo romance de Jorge Amado, Os subterrâneos da liberdade: “o pequeno grupo marchando nas sombras, conduzindo as latas de piche e os pincéis, camaradas colocados nas extremidades da rua para dar aviso se aparecesse alguém, as inscrições rapidamente feitas, a foice e o martelo desenhados em dois traços”.»
Não voltaremos atrás, garantiu.