Retórica e práticas do colonialismo

Domingos Lobo
Aurélio Santos, referindo as práticas do colonialismo luso, assinala que foi assim até aos anos sessenta, ou seja, até ao início do conflito armado: qualquer negro, diz Aurélio Santos, a servir em casa de branco podia ser mandado ao chefe de posto – o administrador local – para que lhe fossem dados castigos corporais, entre os quais palmatoadas (que punham as mãos num bolo) ou chibatadas (que punham as costas em carne viva). Isto era considerado um correctivo mínimo para aqueles que, por exemplo, partissem um prato. Eram esta e outras práticas, arredadas do propalado «humanismo cristão», que faziam prosperar os colonos, chefes de posto, administradores de província e toda a máquina burocrática colonial, igreja incluída, acolitados todos à sombra repressiva do salazarismo, que lhes garantia protecção, benesses e impunidade. Só que à sombra dos imbondeiros, no escuro das sanzalas, nas lavras, nos capinzais, as interrogações brecheteanas de António Jacinto iam prosperando mato adentro, fazendo germinar as raízes da revolta: Quem capina e em paga recebe desdém/fuba podre, peixe podre, panos ruins, cinquenta angolares/porrada se refilares? Quem?/Quem faz o milho crescer/e os laranjais florescer/-Quem?/Quem dá dinheiro para o patrão comprar/máquinas, carros, senhoras/e cabeças de pretos para os motores?
Estas e outras denúncias, e o seu conhecimento directo, embora à época, nas zonas urbanas, já atenuado, polido de arestas mais agressivas, com modos menos violentos, mostrar-me-iam o lado pouco civilizado (para ser benevolente) da nossa colonização exemplar, contrapondo os factos à propaganda do regime, a qual se esforçava por demonstrar que a brandura dos nossos costumes consubstanciava uma ausência total de conflitos rácicos e que a harmonia entre brancos e pretos era uma constante e imagem de marca do humanismo português. A segregação racista era ao lado, a Sul, coisa de pragmáticos e austeros anglo-saxões e hereges calvinistas, práticas com as quais a nossa decantada interculturalidade nada tinha a ver. No terreno, nas imensas matas e savanas de Angola, a realidade da guerra ia, meticulosamente, desmentindo a retórica, desvendando todo o género de atrocidades, ao som de Mauser's e FBP's, dos desfolhantes de Napalm, de generalíssimas ordens, austeras e irracionais, eivadas de medo e com resquícios de uma ideologia bélica e ultramontana bebida nos manuais de anti-guerrilha ianque e nos suportes de genocídio das SS: desde a queima de palhotas (com os habitantes cercados, obrigados a permanecer no meio do fogo, ameaçados de fuzilamento caso tentassem fugir à cremação), à destruição das lavras, à espoliação dos seus parcos haveres (não havia galinha que resistisse à invasão dos nossos bravos), à separação – levando-os a imigrar para os estados fronteiriços – de famílias inteiras, à barbárie da decapitação com exibição dos troféus nas capotas das berliet's, passando pela violação de mulheres, de cafecos, etc..
Apesar de igualmente explorados e vítimas do fascismo salazarista, atirados para o centro de um conflito sem razão e cujos contornos políticos ignoravam, os nossos soldados, que a sistemática e insidiosa propaganda do regime conseguia alienar, comportavam-se, no silêncio armadilhado das matas angolanas, nos primórdios das lutas de libertação (1961/63) não como um exército legítimo, mas como tropa de choque, de ocupação, com métodos de terror que ultrapassavam, pelo belicismo exibido, pelo armamento no terreno, pela fúria regeneradora dos comandos, os incipientes e artesanais processos iniciais da revolta daqueles a quem apelidávamos de turras. Os suaves e beatos discursos de Salazar desnudavam a face: a realidade da guerra trazia à tona uma outra verdade desmentindo os cristianíssimos propósitos da nossa dádiva civilizacional e do seu decantado e generoso esplendor.
Mas toda a esperança se inscreve no futuro e na luta comum e solidária contra a repressão e exploração, como o denuncia o poema «Canto de Esperança» de Viriato da Cruz, no qual a Mãe transporta a metáfora da terra africana, do espaço onde se nasce, onde as raízes precisam de ser livres para fecundar: Tua presença minha mãe – drama vivo de uma Raça/drama de carne e sangue/que a vida escreveu com a pena de séculos./(…)/Vozes vindas dos canaviais dos arrozais/dos cafezais dos seringais dos algodoais…/ dos campos das Carolinas/Alabama/Cuba/Brasil/Vozes dos engenhos dos banguês das tongas/dos eitos das pampas das usinas/Vozes do Harlem (…)h/vozes das sanzalas/Vozes gemendo blues, subindo do Mississipi (…) Pelos teus olhos, minha Mãe/ Vejo oceanos de dor/(…) mas também vejo a luz roubada aos teus olhos/ora esplende/demoniacamente tentadora - como a Certeza…/cintilantemente firme – como a Esperança…/em nós outros teus filhos,/gerando, formando, anunciando – O DIA DA HUMANIDADE.

Bibliografia: «A Guerra e a Literatura», de Rui de Azevedo Teixeira - Vega
– «Resistência Africa» - Antologia poética - Org. Serafim Ferreira - Diabril
– Revista História
– Documentos da Fundação Portugal-África - Un. De Aveiro
– As Feridas Invisíveis, de Silva Martins - Edição C.M. de Benavente



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