Trabalhadores da Gestnave e da Erecta indignados com o Governo

Sem coragem nem palavra

Domingos Mealha
Ao Governo de José Sócrates faltou coragem, para enfrentar a Lisnave e fazê-la cumprir um protocolo, firmado com o Estado a 1 de Abril de 1997, e faltou seriedade, na forma como tratou os trabalhadores da Gestnave e da Erecta. João Paixão, José Pereira e Miguel Moisés, falando ao Avante! após a tribuna pública de dia 21, recordaram os grados financiamentos atribuídos ao Grupo Mello, ao longo de década e meia de «reestruturação» da indústria naval, denunciaram as mentiras mais recentes de governantes e administradores, e transmitiram a indignação de 209 pessoas que, a partir de amanhã, têm por certo apenas o despedimento, enquanto no estaleiro alastra a precariedade de emprego, atingindo níveis que ameaçam o futuro do sector.

Em vez da integração na Lisnave , garantida desde 1997, veio o despedimento colectivo

Da resolução aprovada na passada quinta-feira pelos trabalhadores - reunidos durante várias horas no Jardim das Francesinhas, próximo do Parlamento e da residência oficial do primeiro-ministro, em mais uma acção de protesto, como dezenas de outras acções públicas que levaram a cabo nos últimos dois anos -, já só foram enviadas cópias ao Presidente da República, ao Provedor de Justiça e aos presidentes do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia. Nesta altura, já não faz sentido enviar documentos para os gabinetes dos ministérios, pois está claro que mora entre essas paredes a responsabilidade pelo grave momento que hoje vivem os trabalhadores da Gestnave e da Erecta (estes oriundos, há cerca de dez anos, da ex-Renault de Setúbal).
Expressam repúdio, face ao despedimento colectivo, e sublinham que este é «promovido pelo Governo PS/Sócrates». Reafirmam a exigência de integração dos 209 trabalhadores no quadro de pessoal efectivo da Lisnave, tal como ficou assegurado no protocolo de acordo de 1997, assinado, em nome do Governo de António Guterres, pelo actual ministro das Finanças. Mas acrescentam que essa garantia também é dada pelo Código do Trabalho, no artigo sobre a transmissão de estabelecimento e noutros. As condições para a segunda fase da reestruturação da indústria naval na Península de Setúbal estão definidas na Resolução 28/97, do Conselho de Ministros, e no Decreto-Lei 297/97.
Como resultado, a Lisnave hoje está em boa situação económica e financeira, com um resultado líquido acumulado de 16,1 milhões de euros (antes de impostos), nos anos de 2004 a 2006.
Mas o compromisso com os trabalhadores que não foram abrangidos pelo «plano social» (pré-reformas e reformas antecipadas) está por cumprir, o previsto quadro de efectivos da Lisnave não foi respeitado e o crescimento do trabalho precário poderá pôr em causa o futuro da actividade naval na região, a médio prazo. O Estado - que financiou o Grupo Mello e a Lisnave para esta operação, que detém a propriedade do estaleiro da Mitrena, que possui 2,9 por cento das acções da Lisnave e que é o único accionista da Gestnave e da Erecta - admitiu uma violação de compromissos que favorece o capital e prejudica gravemente os trabalhadores e o interesse nacional.

Os dias do embuste

«Sentimos a mais profunda falta de seriedade e de respeito para com os trabalhadores, por parte deste Governo PS», afirma José Pereira, coordenador da CT da Gestnave. E acusa: «Os trabalhadores têm sido enganados por estes governantes, a começar pelo primeiro-ministro, que não quis assumir as responsabilidades do Estado, fixadas no protocolo entre o Estado e o Grupo Mello, e "chutou a bola" para os ministérios da Economia e das Finanças, onde temos sido muito mal tratados».
Os representantes dos trabalhadores da Gestnave e da Erecta propuseram, reclamaram e exigiram ser recebidos pelos secretários de Estado da Economia, da Indústria e das Finanças, mas «neste Governo PS, não passamos dos chefes de gabinete». Mais grave, diz José Pereira, «o chefe de gabinete do secretário de Estado da Indústria tem-nos andado a mentir».
Aos compromissos escritos que não foram respeitados pelas empresas e pelo Estado, soma-se, nos últimos meses, um recheado «diário do embuste», descrito pelo coordenador da Comissão de Trabalhadores.
No dia 12 de Julho de 2007, no Ministério da Economia, aquele chefe de gabinete, eng. António Souta, «transmitiu-nos que, por despacho conjunto com as Finanças, tinha sido nomeado um grupo negociador, para tratar com a Lisnave da integração dos trabalhadores». Respondendo à exigência de participação destes, «disse que o grupo era o mais neutro possível, nem lá tinha o administrador da Gestnave», mas declarou que «havia abertura a que os representantes dos trabalhadores participassem em futuras reuniões».
Passados cinco meses, a 12 de Dezembro, «o mesmo chefe de gabinete, no mesmo local, diz-nos que as negociações com a Lisnave estavam em fase terminal, não tinham sido fáceis, mas o Governo iria exigir da empresa o cumprimento do protocolo de 1997 e nós, até final do ano, iríamos ser informados do resultado». Afinal, «isso não aconteceu».
Desde Julho, o administrador (único) da Gestnave e da Erecta deixou de reunir com as comissões de trabalhadores. «Foram-lhe dadas orientações nesse sentido pelo Governo», admite José Pereira, explicando que, «em nosso entender, isto foi tudo cozinhado entre eles, porque este administrador também é um homem do aparelho do PS». No final de 2007, «quando estava já tudo decidido entre a Lisnave e o Governo, o administrador fez publicar informações internas, sem reunir com as comissões de trabalhadores e sem colocar qualquer hipótese de negociação».
A primeira dessas informações, a 28 de Dezembro, veio anunciar a cessação da actividade da Gestnave, com o fim do contrato de prestação de serviços «take or pay» com a Lisnave. Desde o primeiro dia útil de 2008 deixou de ser distribuído trabalho ao pessoal da Gestnave e da Erecta.
A 3 de Janeiro de 2008, informa ter recebido instruções dos secretários de Estado da Indústria e das Finanças, para abrir um novo processo de rescisões de contratos «por mútuo acordo», até 29 de Fevereiro, oferecendo indemnizações de 1,3 meses por cada ano de trabalho. Ora, «o último processo de rescisões tinha terminado em Setembro», pelo que, «para esta nova fase, seria necessário o parecer prévio da CT, mas não foi pedido». Logo, «o administrador e o Governo tomaram uma decisão ilegal».
No dia 10 de Janeiro, «fomos surpreendidos por outra informação interna, a anunciar que o administrador teria entregue no Ministério do Trabalho a denúncia dos contratos de trabalho por caducidade e a subsequente entrada num processo de despedimento colectivo». Nesse mesmo dia as CTs receberam do administrador o processo que tinha seguido para o Ministério do Trabalho e uma convocatória para uma reunião.
Nesta reunião, a 21 de Janeiro, as comissões de trabalhadores depararam-se com um representante do Ministério do Trabalho e com um assessor jurídico, contratado pela Gestnave. «Antes de explicar os pressupostos da reunião, o administrador, numa atitude de má fé, apresentou uma folha em branco, para assinarmos, como se fosse uma folha de presenças», recorda José Pereira, para quem «isto faz lembrar os contratos de trabalho dos jovens que agora vão para o estaleiro, com vínculos precários, onde a última folha, que eles têm que assinar, está em branco, para o patrão poder em qualquer momento escrever o que lhe apetecer»...
Poucos dias antes desta reunião, «tínhamos estado com um assessor do primeiro-ministro, como estivemos hoje, que nos disse que estavam a decorrer negociações com a Lisnave; tínhamos estado no Governo Civil, e disseram que estavam em curso negociações com a Lisnave». Os representantes dos trabalhadores abandonaram a reunião convocada pelo administrador, pois «estávamos a aguardar uma resposta política do Governo».
Ainda nesse mesmo dia, o administrador comunicou às CTs que estava assinado um «acordo de princípios» entre o Governo e a Lisnave. «Ou seja, enquanto nós estávamos, de manhã, naquela reunião, estavam os secretários de Estado a assinar com a Lisnave», conclui José Pereira, indignado.
O roteiro da luta levou os representantes dos trabalhadores a uma reunião na DGERT (Ministério do Trabalho), para impugnar o despedimento colectivo. Na ACT de Setúbal, a antiga Inspecção do Trabalho, «tinham-nos dito que havia todas as condições para esta impugnação», mas ali, «durante duas horas, o sub-director-geral da DGERT apenas repetiu que estava tudo legal, não havia factos ilícitos e que, mesmo que houvesse algo, não lhes cabia a eles apurar isso».
No dia 28 de Janeiro, o administrador «dá-nos conhecimento verbalmente do "acordo de princípios" assinado pelo Governo e pela Lisnave». José Pereira conta que «foi das reuniões mais frias que tivemos com este administrador»: «Chegou, trazia os papéis, "bom dia, meus senhores", começou a ler o acordo e, quando acabou, esclareceu que só fez aquilo porque tinha sido obrigado pelo Governo». Os membros das CTs colocaram três questões concretas e pediram uma cópia do documento. Não tiveram qualquer resposta.
A 31 de Janeiro, de manhã, teve lugar uma nova acção de protesto, junto ao Governo Civil de Setúbal, com os trabalhadores da Gestnave, da Erecta e da Lisnave. «Durante esse dia, vários trabalhadores foram recebendo telefonemas de casa, a dizerem-lhes que tinha chegado a carta de despedimento da empresa».

O Governo mente e foge

A comissão de Trabalho da AR foi uma das entidades a quem as comissões de trabalhadores várias vezes solicitaram ser ouvidas. Miguel Moisés, da CT da Gestnave, recorda que «numa audição, em Fevereiro de 2007, por proposta do deputado comunista Francisco Lopes, foi decidido na nossa presença que a comissão iria questionar os ministros do Trabalho, das Finanças e da Economia sobre os problemas por nós levantados». As respostas chegariam em meados de Outubro.
Ao ter conhecimento destas, «verificámos que os ministros estavam a mentir, a nós diziam uma coisa e aos deputados diziam outra». Quando voltaram a ser recebidos na comissão, em Novembro, «por escrito, desmentimos as respostas dos ministros». Novamente por proposta de um deputado comunista, Jorge Machado, a comissão entendeu que deveria ser chamado o ministro da Economia.
Na tarde de 31 de Janeiro, Manuel Pinho acabou por mandar à comissão os secretários de Estado da Indústria e Inovação e do Tesouro e Finanças. Citando o relato de Bruno Dias, deputado do PCP que esteve nesta audição e considerou que foi dos piores momentos vividos na comissão de Trabalho, José Pereira diz que «durante mais de meia hora, o presidente da comissão, Vítor Ramalho, elogiou os processos da Sodia (ex-Renault) e da Lisnave e o comportamento do Governo, mas, às nossas questões concretas, colocadas pelo PCP, não houve resposta».
«Foi este sentimento que transmitimos hoje ao assessor do gabinete do primeiro-ministro», conclui o coordenador da CT da Gestnave: «Têm-nos vindo a mentir, dizendo que iríamos ser recebidos pela Economia e pelas Finanças, que havia entendimento entre estes ministérios para nos receberem, ainda ontem a governadora civil disse que seríamos recebidos esta semana... Mas o que recebemos foi um email, enviado pela secretária do administrador da Gestnave, a comunicar que os secretários de Estado não nos iriam receber e que o administrador está disponível, se solicitarmos uma reunião, para esclarecer o que quisermos.»
Este é o administrador que, três semanas antes, não tinha aval do Governo para responder... Neste cargo, refere João Paixão, da Comissão de Trabalhadores da Erecta, os membros das CTs vêem-no como «um guarda-chuva», utilizado «para não serem os secretários de Estado, os ministros nem o primeiro-ministro a confrontarem-se com as justas questões levantadas» pelos operários.

Limpar a imagem
com um «acordo»


O «acordo de princípios» que Governo e Lisnave assinaram a 21 de Janeiro era desnecessário, se o protocolo de 1997 fosse cumprido. Surge, explica José Pereira, porque «o Governo não teve coragem para enfrentar a Lisnave e quer sair com a imagem limpa, dizendo "está aqui uma solução para 140 trabalhadores, só não aceita quem não quiser trabalhar", mas nós contrariamos esta solução».
Do ponto de vista dos trabalhadores, o «acordo de princípios» atira 209 trabalhadores qualificados e experientes para o desemprego, rescindindo os contratos com a Gestnave e a Erecta, e passando depois, alguns deles, a trabalhar por conta de uma empresa de trabalho temporário, que é a Select Vedior.
Por acção do Sindicato dos Metalúrgicos do Sul, realizou-se a 15 de Fevereiro uma reunião na ACT de Setúbal, com os responsáveis máximos da ACT a nível regional e local, e os presidentes do Conselho de Administração e da Comissão Executiva da Lisnave. José Rodrigues e Frederico Spranger repetiram que a Lisnave se propôs «gerar» 200 postos de trabalho até 31 de Dezembro, e até 30 de Abril contratará 140 desses 200, que serão trabalhadores da Gestnave e da Erecta. Foi dito, com todas as letras à frente dos representantes dos trabalhadores e à frente dos responsáveis da ACT, que vão escolher «pelas caras». Não vão precisar de administrativos, nem de pessoas que tenham desqualificação profissional (por acidentes de trabalho) ou sejam portadoras de doença profissional. Não querem admitir pessoal com funções técnicas. E assumiram também, nessa reunião, que não querem sindicalistas.
No dia 21, os trabalhadores começaram a receber cartas da Lisnave. Miguel Moisés realça que «estão a ser convocados para uma entrevista, não é para irem trabalhar». É que o accionista-presidente da Navivessel, a empresa proprietária da Lisnave, José Rodrigues, «disse na ACT que a entrevista tem um objectivo muito concreto, que é saber se o trabalhador está na disposição de se enquadrar naquilo que são os objectivos estratégicos da empresa e deixou claro que pode ser um bom profissional, mas se não mostrar esta disposição, já não serve».
João Paixão cita a resposta sobre o que sucederia a um trabalhador que não aceitasse a rescisão. O presidente da Lisnave «disse que não vai haver discriminação nenhuma, mas ameaçou que "pode lá chegar e a vaga já estar ocupada", e isto é dito, sem qualquer consequência, à frente dos responsáveis da inspecção do trabalho».
Lembra José Pereira que a Select Vedior «é uma multinacional de trabalho temporário, e não é melhor na Lisnave do que tem sido noutros casos». «Não nos esquecemos de que o objectivo da Lisnave e do Governo era pôr-nos a todos na rua, já no final de 2007, pelo que o «acordo de princípios», não sendo bom, foi já uma coisa que os trabalhadores os obrigaram a fazer». Só que, «apenas por ser resultado da nossa luta, o acordo não fica melhor». Aceitá-lo ou não, «cada um vai ter que decidir», insistindo as comissões de trabalhadores na necessidade de esclarecimento do que está em causa.


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