- Nº 1783 (2008/01/31)

A Virgem e as Mais-Valias

Argumentos

Em Portugal, a trafulhice campeia. Basta ver-se as trocas-baldrocas que chegam ao conhecimento do cidadão comum e os escândalos públicos que envolvem financeiros, ministros, políticos, padres, comentadores, etc. Tudo é mercado, tudo se compra e vende. O governo faz negócios à vista com os empresários, a comunicação social troca a isenção e o afastamento que apregoa pelas gordas avenças da publicidade e da propaganda política encapotada e a igreja «vende bem» as teologias e as éticas enquanto negoceia com os ricos as suas esferas de influência. Numa sociedade dominada pela sofreguidão do lucro e pela cupidez, o clero declara-a pecadora mas continua a intervir activamente nas operações do mercado.
Os inesperados «acidentes de percurso» sofridos pelo chamado Novo Aeroporto de Lisboa são bem demonstrativos dos gigantescos negócios que ligam na perspectiva do lucro o poder político, o poder financeiro privado e o poder eclesiástico. E já se conhecem dados suficientes que permitem reconstituir, em parte, a intriga política/eclesiástica/financeira que continua a desenvolver-se na sombra. Ainda a procissão vai no adro.
Tudo começou há muito tempo, há mais de vinte anos e partiu de núcleos separados, com alvos distintos mas convergentes. O Estado neocapitalista queria abrir rapidamente caminhos, os grandes financeiros visavam consolidar e ampliar posições dominantes, a igreja buscava inverter o sentido de uma preocupante crise de valores e de autoridade e os «patrões» comunitários exigiam celeridade nas mudanças. Foi por essa altura que começou a falar-se em temas como a Ota e o Aeroporto, Fátima e Turismo Religioso, Europa e TGV, etc. No caso da Igreja, houve logo a princípio a suspeita de que qualquer coisa de grandioso se preparava para a Região do Oeste. As organizações católicas compravam a eito todos os terrenos envolventes dos principais eixos ribatejanos e estremenhos e registou-se um gigantesco investimento na reestruturação e informatização dos serviços do Santuário de Fátima. Tão grande foi esse esforço que Fátima se transformou no maior pólo logístico do país. Foi-se radicando como irreversível a ideia de que a localização do Aeroporto seria na Ota. Começaram a chover, de todos os lados, novos investimentos, sobretudo nas áreas da construção civil, hotelaria e zonas de lazer. O Governo apoiou esta tendência com isenções fiscais e o anúncio de estarem a ser estudados importantes projectos de obras públicas de remodelação e construção de infraestruturas rodoviárias e ferroviárias na região alargada do novo aeroporto.

O realinhamento dos projectos

Entretanto, embora a ritmo mais lento, avançavam os projectos do TGV (1122 milhões de euros a pagar em 2013) e dos campos de golfe, condomínios e hotéis de luxo (270 milhões de euros) projectados por consórcios ingleses para os lazeres dos milionários. Fátima seria o centro nevrálgico desta vasta região.
Percebeu-se, então, que os projectos eram incompatíveis entre si. Como seria este opulento paraíso dos banqueiros caso os céus fossem permanentemente cruzados pelos jactos dos peregrinos e dos turistas, as novas estradas se atulhassem de carros e, mesmo ao lado dos hotéis de cinco estrelas surgissem hospedarias modestas habitadas
pela classe média dos romeiros «de pé descalço»? Seria o caos. A primeira medida a tomar teria de ser a da deslocalização do novo aeroporto. E foi o que se fez. Apesar da confusão complexa e delicada que esta decisão vai provocar. Há compromissos assumidos nos projectos que pressupunham o aeroporto na Ota, compensações milionárias que irão ser exigidas e fundos comunitários em dúvida. Mas não choremos pela «Igreja que sofre». Comprou terrenos na «baixa» para os revender em «alta». Que «mais valias» terá recolhido o Santuário da Virgem destas transacções de terrenos comprados a preços de há vinte anos e revendidos aos câmbios actuais a empresas multimilionárias ? E receberá, sem dúvida, importantes indemnizações e contra-partidas.
Recorde-se o que o próprio Sócrates afirmou em relação do projecto do aeroporto: perímetro de 1810 hectares, custos da ordem dos 3 mil milhões de euros, criação de 56 mil postos de trabalho. Tudo isto se esfumou de uma penada. O aeroporto mudará de localização, o negócio regressará à estaca zero e recomeçará, com os mesmos actores e os mesmos interesses, em Alcochete.
Quem tudo paga é o anónimo povo português. Os grandes accionistas do empreendimento nunca serão lesados. Como afirmava há dias o presidente da SATA, a transportadora açoriana: «ainda que, por vezes, tenhamos de rezar a Nossa Senhora para que tudo corra bem».

Jorge Messias