Uma velha impostura
Tem estado em exibição nas salas portuguesas o filme «Jogos de Poder», de Mike Nichols, cujo tema central é a denúncia do mercado de influências e pressões, digamos assim, características dos bastidores da área política norte-americana nos anos da intervenção USA no Afeganistão por interpostos mudjahidines. Em rigor, o tema central do filme será o clima de extrema baixeza em que decorrem os «jogos de poder», surgindo o anticomunismo e o anti-sovietismo como implícitas verdades consabidas. e como contexto sem o qual o resto não faria sentido ou nem sequer seria possível. Mas o que mais interessa a esta coluna não é o produto cinematográfico, que aliás nem é trigo desta seara, mas sim o «trailler», o breve filme publicitário, que dele tem vindo a ser transmitido na televisão. Sucede mesmo que, talvez por excessivamente inclinado para a suspeição em consequência de numerosas e diversificadas experiências anteriores, ando desconfiado de que não será comum uma tão intensa e prolongada promoção na TV, mas admito que a suspeita seja infundada. O que seguramente não é infundada é a verificação de uma evidência: no referido «trailler» abundantemente transmitido para uma teleplateia de milhões está incluída uma patranha que não é nova, que faz parte do arsenal de caluniosas aldrabices regularmente disparadas contra a defunta União Soviética, mas que nem por ser velha se deve deixar passar em claro. Por uma óbvia questão de asseio e também porque, como bem se sabe, mentira a mentira se vai construindo na cabecinha de cada cidadão um «erzatz» da realidade que é um mundo radicalmente falsificado. Neste caso, trata-se da «invasão soviética» do Afeganistão, coisa que nunca na verdade existiu excepto nas versões mentirosas, mas caudalosamente distribuídas por todo o mundo, da propaganda norte-americana. Curiosamente, no pequeno texto acerca do filme que o «Público» tem vindo a inserir fala-se antes de «avanço soviético» no Afeganistão. Quero crer que a fórmula encontrada não terá resultado de um acaso, mas sim de escrúpulo e cautela. A questão, como facilmente pode saber quem queira conhecer a verdade, é que as forças soviéticas que intervieram no Afeganistão ao longo de cerca de dez anos o fizeram a pedido do governo afegão, que se sentia impotente para dominar a acção militar dos mudjahidines que actuavam a partir de bases situadas no Paquistão, já então um efectivo súbdito político dos Estados Unidos, e eram armados pelos patrões norte-americanos. Quanto a este último ponto, aliás, o filme «Jogos de Poder» é totalmente explícito
O crime e depois
Poder-se-á talvez admitir, até porque afinal «os americanos não hão-de mentir em tudo» que Muhamad Najibullah, o presidente que pedira o auxílio soviético contra os peões de Washington, os tais mudjahidines, não teria representatividade suficiente nem reconhecimento internacional. O caso, porém, é que os tinha, à representatividade e ao reconhecimento, e de tal modo que algum tempo antes da vitória da rebelião e de, na sequência dela, ter sido miseravelmente assassinado por enforcamento no candeeiro de uma rua de Cabul, o presidente Najibullah dirigira-se à comunidade internacional a partir da tribuna da Assembleia das Nações Unidas, lugar de onde não pode falar o primeiro sujeito que por ali surja. Quanto ao resto da história, que aliás ainda não terminou, é triste para várias partes, até para a norte-americana, pois a vitória dos mudjahidines depressa se transmutou em vitória dos talibans, que implantaram um regime de extrema opressão fundamentalista e, como se sabe, são acusados por Washington de acolherem Bin Laden e outros alegados responsáveis pelo 11 de Setembro. De resto, é esta a justificação invocada pelos Estados Unidos para a invasão do Afeganistão que está em curso. Mas do que nos ocupamos hoje aqui é da utilização da promoção publicitária de um filme para reiterar, sem a mínima possibilidade de objecção pelo contraditório, a versão mentirosa da «invasão soviética do Afeganistão». Dir-se-á porventura que não é coisa assim tão grave porque a URSS já não existe. Pois não, embora possa pensar-se que a sua certidão de óbito ainda não está completamente preenchida. Mas por alguma razão a mentira continua.
O crime e depois
Poder-se-á talvez admitir, até porque afinal «os americanos não hão-de mentir em tudo» que Muhamad Najibullah, o presidente que pedira o auxílio soviético contra os peões de Washington, os tais mudjahidines, não teria representatividade suficiente nem reconhecimento internacional. O caso, porém, é que os tinha, à representatividade e ao reconhecimento, e de tal modo que algum tempo antes da vitória da rebelião e de, na sequência dela, ter sido miseravelmente assassinado por enforcamento no candeeiro de uma rua de Cabul, o presidente Najibullah dirigira-se à comunidade internacional a partir da tribuna da Assembleia das Nações Unidas, lugar de onde não pode falar o primeiro sujeito que por ali surja. Quanto ao resto da história, que aliás ainda não terminou, é triste para várias partes, até para a norte-americana, pois a vitória dos mudjahidines depressa se transmutou em vitória dos talibans, que implantaram um regime de extrema opressão fundamentalista e, como se sabe, são acusados por Washington de acolherem Bin Laden e outros alegados responsáveis pelo 11 de Setembro. De resto, é esta a justificação invocada pelos Estados Unidos para a invasão do Afeganistão que está em curso. Mas do que nos ocupamos hoje aqui é da utilização da promoção publicitária de um filme para reiterar, sem a mínima possibilidade de objecção pelo contraditório, a versão mentirosa da «invasão soviética do Afeganistão». Dir-se-á porventura que não é coisa assim tão grave porque a URSS já não existe. Pois não, embora possa pensar-se que a sua certidão de óbito ainda não está completamente preenchida. Mas por alguma razão a mentira continua.