
- Nº 1780 (2008/01/10)
A festa e o logro
Argumentos
Por altura da chegada do novo ano, tocaram os sinos mediáticos em excitados repiques anunciando a chegada, considerada relativamente próxima, não já do salvador dos homens, pois então já o Natal era passado, mas sim de um renovo da comunicação televisiva graças ao advento da TV digital. A avaliar pelo que se ouviu e leu, esta televisão chata e repetitiva que nos mastiga os dias vai mudar completamente de pele, como as lagartas, após o que o nosso quotidiano voltará ao tempo dos míticos dias felizes que de facto nunca existiram. É certo que a alegria generalizada que a boa nova suscitou não teve igual intensidade em todos os espíritos. Por exemplo, o dr. Balsemão, sem prejuízo de se mostrar justamente festivo pelo avanço tecnológico, mostrou-se pessimista quanto ao seu efeito sobre a qualidade das programações, sobretudo perante a perspectiva de o sistema digital abrir caminho para a existência de um novo canal generalista em canal aberto, isto é, para mais um concorrente da SIC. Explicou ele, e muito bem, que o mercado publicitário, agora disputado entre a RTP e a TVI, passará a ser partilhado por mais uma estação, de onde um menor cociente de receitas para cada uma delas. Ora, com menos receitas terá a SIC de apertar os cordões da sua bolsa na parte destinada à produção, de onde um maior recurso aos chamados «enlatados» e, consequentemente, uma quebra da qualidade. Presume-se, naturalmente, que o doutor não sabe de «enlatados» com qualidade (porventura por só conhecer os made in USA, e não os melhores mesmo entre esses), e pressente-se também estar ele convencido de que a actual SIC é abundante em programas interessantes e meritórios. De qualquer modo, não o recriminemos excessivamente por essa ilusão, bem se sabe o que é o amor paternal. Como dizia, há anos, o brasileiro Jô Soares, «tem pai que é cego».
Uma espécie de venda
Porém, por muito respeitáveis e relevantes que sejam os sentimentos, receios e opiniões de Francisco Balsemão, há que atentar nas generalizadas reacções de optimismo que a anunciada chegada da TV digital provocou. Dir-se-ia que o conjunto por vezes assustador de mediocridades que hoje nos são impingidas pelos diversos canais, os chamados «abertos» a que qualquer telespectador tem acesso mas também a maior parte dos que são fornecidos por cabo, vão subitamente regenerar-se graças ao toque mágico da «digital» e passarão a ser excelentes, úteis, enriquecedores ou pelo menos minimizadores da pobreza que hoje habita as cabecinhas de milhões de utentes, precisamente por efeito da televisão que lhes invade olhos e ouvidos. Uma expectativa destas é, na melhor das hipóteses, um equívoco, e será um premeditado logro se corresponder à feia intenção de convencer as gentes desprevenidas de que um progresso técnico implica um enriquecimento dos conteúdos. Não implica, é claro. De facto, o grande crime da televisão tal como hoje a conhecemos não será suprimido ou sequer atenuado pelo acesso a um maior número de canais ou a uma melhoria da imagem e do som: manter-se-á enquanto a TV for dominada por interesses não apenas comerciais/financeiros, o que já seria mau, mas também por interesses ideológicos que usam a televisão como arma de poderosos e perversos efeitos no terreno da luta de classes. Será para fazer-nos esquecer este dado essencial que, para lá de motivações de carácter publicitário com vista a promover o novo produto, a chegada da TV digital ao nosso horizonte temporal motivou tão notória festa. Confundir a embalagem da mercadoria a vender com a qualidade, a utilidade, a adequação do produto às efectivas necessidades sociais, sempre foi um estratagema reles mas muito usado. No caso da televisão, é fundamental não esquecermos que mesmo hoje, quando o seu impacto junto de certos segmentos das populações se anuncia em declínio em favor de outros meios de comunicação electrónica, é ainda a TV que condiciona convicções e «leituras do mundo»; que substitui a realidade por uma sua contrafacção quotidianamente lançada para os olhos dos telespectadores como uma espécie de venda que os impede de entender o que de facto acontece. Que essa venda venha a tornar-se «digital» num futuro já próximo é capaz de não ser motivo para que nos fascinemos.
Correia da Fonseca