Tempo de leilões

Correia da Fonseca
Discretamente, muito de passagem entre outras notícias de abordagem mais demorada e por isso implicitamente consideradas muito mais importantes, a televisão informou-nos de um leilão onde a banca iria pôr à venda apartamentos ou vivendas, de qualquer modo residências, que caíram na sua posse por falta de pagamento das prestações mensais contratualmente previstas em operações de financiamento à compra de casa própria.
Depois, como é natural, o pivot do telenoticiário passou adiante, esperavam-no outras noticias, talvez um directo para acompanhar a entrada de José Mourinho numa barbearia em Setúbal ou mais umas imagens do vulcão dos Capelinhos, essa obra de engenharia geofísica portuguesa cujo meio-século agora se celebra e cuja autoria quase é atribuída ao «regime autoritário» do doutor Salazar. Chegados ao fim do noticiário, depois de informações sobre os árbitros da próxima jornada da Superliga e da notícia ilustrada de mais umas fortes chuvadas nos Estados Unidos, poucos terão sido os que ainda se recordavam daquela estória do leilão. Talvez só aqueles que ainda são do tempo em que quase havia uma loja de penhores em cada rua, em que seguramente havia mais que uma em cada bairro das maiores cidades, e sabem como pelos balcões delas passavam as alianças de casamento, os cordões da avó, os relógios de bolso, até os sobretudos quando o Inverno passava. Eram tristes estabelecimentos comerciais, as casas de penhores. Agora já não há disso ou, pelo menos, são raras. O que há, isso sim, são bancos, dependências deles por vezes como que aos molhos em certas zonas urbanas. Tudo é agora menos sombrio, com muito melhor apresentação. De resto, nos mencionados maus velhos tempos não era usual ir pôr apartamentos no «prego». Mas voltam agora os leilões. de casas onde morou gente e agora já não mora porque foi despejada e abalou para parte incerta. Talvez também para destino incerto.

Um ciclo in­fernal

Apesar do breve tempo que a notícia do leilão tomou na totalidade do telenoticiário, o acontecimento é importante. Este leilão não foi decerto o primeiro no seu género, seguramente que não será o último, mas a notícia dele adquiriu uma especial capacidade de impacto por chegar numa altura em que muito se vai falando já da chamada «bolha imobiliária» nos Estados Unidos, tanto que até o professor Marcelo já a incluiu nas suas «opiniões» tentando aliás desvalorizá-la. A «bolha» parece estar aliás na raiz de uma crise que ameaça vir por aí abaixo e já assusta alguns. Mas o leilão português não tem propriamente relação com a «bolha» norte-americana; a lusitana «bolha» terá quando muito uma dimensão à nossa medida, talvez até nem mereça a designação. Mas sabe-se como nasceu: o velho mercado do arrendamento habitacional deixou de funcionar, dizem candidatos a inquilinos por causa dos valores exorbitantes pedidos pelo aluguer, pelo que a compra emergiu como opção. Só que o comprador, sendo um português vulgar, não tinha dinheiro e, não tendo dinheiro, teve de pedi-lo à banca. Correu a coisa de tal modo que o crédito imobiliário se tornou o negócio mais cobiçado pelos bancos por ser rendoso, durável e seguro. Passaram uns anos, Portugal passou a ser um dos países com maior percentagem de cidadãos a viver em casa própria, isto era terra onde aparentemente havia muitos proprietários. Mas começaram a pingar desgraças. Desgraças «modernas». O nível de vida aviltou-se; as remunerações do trabalho foram sendo roídas pela inflação em anos consecutivos; o trabalho precário tornou-se muitas vezes um mero preliminar do desemprego; o subsídio de desemprego esgotou-se em muitos milhares de casos. Tornou-se impossível o pagamento das mensalidades à banca. O despejo tornou-se inevitável. Toda a gente sabe isto, toda a gente é capaz de entender a inexorabilidade deste ciclo infernal. Rectifica-se: não o sabe e/ou não o entende o governo. Agora chegou a fase dos leilões. Com eles, o ciclo pode renovar-se, voltar ao princípio. No caminho fica um rasto de desespero, de miséria, de pensamentos suicidas, de vidas de qualquer forma aniquiladas. É o Mercado, é o Capitalismo, é a Modernidade. Deve estar tudo bem.


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