A segunda face

Correia da Fonseca
Talvez por não ser dos que desistem com facilidade, talvez apenas porque olhar a televisão se me tornou um vício com o rodar dos anos, teimo em procurar nas telenovelas portuguesas que nos são fornecidas, sobretudo nas transmitidas pela TVI, que é a campeã de audiências, sinais que confirmem serem elas efectivamente portuguesas, isto é, que as vinculem ao menos um pouco à realidade portuguesa em que todos estamos mais ou menos mergulhados ou, no mínimo, envolvidos. Esta atenção prioritária mas não exclusiva à TVI explica-se ainda pela circunstância de ser ela a estação mais vista pelos telespectadores jovens, o que implica ser também a que provavelmente mais influi na formação de cidadãos, no que eles pensam e preferem não apenas hoje mas também amanhã. O caso é que, por muito que o neguem alguns ao pressentirem que à TV podem ser exigidas responsabilidades pelo que vai acontecendo nas sociedades, a televisão é uma fortíssima proponente de modelos de comportamentos e de convencimentos. A essa sua capacidade de indução se deve, aliás, o prestígio (e também o preço) da publicidade por ela veiculada, e aí já os mesmos sábios não se atrevem a negar o poder persuasório da TV temendo poderem prejudicar-lhe o negócio, pecado esse que poderia ser-lhes mortal. Ora, para que nem tudo seja mau, podia pelo menos a TV cada vez mais comercial, seja privada ou pública, ao mesmo tempo que nos impinge detergentes, carros e endividamento fácil, dar-nos uma imagem verdadeira do que neste nosso País vai acontecendo às pessoas que o habitam. E não estou a falar dos noticiários onde, na melhor das hipóteses, o que é relevante, se lá conseguir entrar, é estrategicamente preterido em favor do inócuo e do superficial: estou a falar exactamente da ficção televisiva. Porque, na TV, como aliás já aqui tem sido dito, a ficção é também informação não assumida como tal, «clandestina». Se uma novela decorre em Portugal, ou no Brasil, ou na Patagónia, os telespectadores são levados a crer que a vida quotidiana na Patagónia, no Brasil ou em Portugal, é como transparece na novela. O que na esmagadora maioria do casos é falso.

Uma espécie de vírus

Ora, por mais que eu perscrute as novelas da TVI, sobretudo as que são interpretadas por jovens e supostamente abordam vidas e problemas dos jovens (dizendo-o assim já estou a ser inexacto, pois pareço admitir que há um «universo» juvenil inteiramente desligado do resto do País, o que não é verdade), não encontro lá vestígios das grandes questões que caracterizam hoje a vida quotidiana dos portugueses. Digamos que essas novelas são um coerente complemento do conteúdo dos telenoticiários onde os pivots falam muito mas não deixam escapar «notícias do meu País» que dêem para caracterizar suficientemente o momento que vivemos. Não surpreende que seja assim: um intelectual norte-americano mundialmente (re)conhecido, Chomsky, escreveu recentemente que a «canibalização da informação pelo desporto, a meteorologia e os fait-divers, tudo numa orgia de publicidade» é o instrumento de domínio psicológico dos regimes a que ele ainda chama democráticos. Neste quadro, a extensão informativa que as novelas constituem arredam-se de quanto possa ser revelador da autêntica situação nacional e emigram para as ocupações e preocupações tidas como caracterizadoras da juventude: curtir, consumir, cruzar rivalidades e ciúmes, intrigar às vezes, ignorar tudo o resto. As jovens vedetas que interpretam este tecido estéril e gravemente mentiroso tornam-se modelos aos olhos dos jovens espectadores e mesmo em dois sentidos: em modelos de comportamento, de «estilo de vida», de acordo com o que é lei geral na TV, e modelos como exibidores de «vestuário para jovens» numa publicidade não assumida que aliás é proibida, o que não incomodará ninguém. E esta é a segunda face, maquilhada face, da (des)informação televisiva. A que, provavelmente, é mais profunda e duravelmente absorvida por multidões de jovens telespectadores já anteriormente habitados por uma espécie de estranho vírus que tem um efeito curioso mas hoje muito frequente: os seus portadores desconhecem quase todo o País onde vivem. Como querem os que mandam na TV.


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