Entrevista com Daniel Blanco

Cuba afirma opção revolucionária

Hugo Janeiro
No último ano, multiplicaram-se os vaticínios de «fim do regime». Daniel explicou-nos que não é como pretende a Casa Branca, mas como decide o povo cubano. E este quer prosseguir livre, soberano e consciente da sua opção revolucionária.
Daniel Blanco estuda Direito na Universidade de Havana. Aos 19 anos, este jovem membro do secretariado da Federação Estudantil Universitária, decidiu gozar em Portugal um período de férias retemperando forças para «seguir lutando», disse-nos.
Os olhos tornam-se vivos quando fala do seu país, mas não perdem entusiasmo quando a «bússola» nos leva a outros povos que aspiram à transformação social. Daniel é um afável conversador e a convicção no futuro da humanidade liberta da exploração fá-lo avançar.

A!: Fidel Castro foi obrigado a delegar no vice-presidente, Raúl Castro, as responsabilidades para as quais tinha sido eleito. Porque é que o processo foi assim conduzido e como é que o povo cubano reagiu?

Daniel Blanco: A figura do camarada Fidel Castro, actual presidente dos conselhos de Estado e de Ministros e primeiro secretário do Partido Comunista de Cuba, marcou a nossa história e foi o líder da última etapa na luta pela libertação e, depois, na condução das vitórias revolucionárias.
O seu estado de saúde foi para nós um duro golpe. Foram momentos delicados onde ficou claro que Fidel é muito querido pelo povo. Apesar de tudo, creio que toda essa dor se converteu em determinação em cumprir as orientações por ele propostas na mensagem que dirigiu aos cubanos: que o país continuasse a trabalhar; que não se descuidassem os principais programas; que se conservassem a qualquer preço as conquistas alcançadas; que se respeitasse a passagem de responsabilidades tal como estabelece a Constituição.
Neste aspecto, não foram violados quaisquer princípios legais. O camarada Raúl Castro é o primeiro vice-presidente dos conselhos de Estado e de Ministros, é o segundo secretário do partido, portando é quem assume em caso de ausência do presidente.
Um ano e alguns dias depois do início deste processo, já satisfeitos com a franca recuperação do Comandante, activo através das suas reflexões, o país continuou o seu caminho. Nenhum dos projectos prioritários foi interrompido, antes pelo contrário, colhemos mais e melhores resultados e, sobretudo, o povo cresceu.
Prova é que o país enfrentou com sucesso eventos de magnitude internacional. Logo no mês de Setembro, Cuba recebeu a Cimeira dos Países Não-Alinhados, movimento ao qual damos muita importância no contexto internacional.

Mas a par das chamada «mudança de regime», sobressaiu a exigência de realização de eleições. Porque é que não ocorreram e como é que funciona o sistema eleitoral cubano?

É bom que fique claro que estamos a preparar-nos para enfrentar um processo eleitoral geral no próximo mês de Outubro, mas vamos directos ao assunto. As nossas eleições gerais realizam-se a cada cinco anos, e a cada dois anos e meio elegemos os delegados de circunscrição.
Criticam-nos por ser um sistema de partido único. Eu tenho um critério pessoal sobre o tema e desafio os leitores a reflectirem. Nos EUA, por exemplo, existem muitos partidos, mas apenas dois têm acesso ao poder. Mais, poucas diferenças encontramos entre os programas Republicano e Democrata.
Em Cuba temos um só, o Partido Comunista, é verdade. Mas os candidatos às eleições não são escolhidos pelo partido. É o povo, reunido em assembleias de base, às quais chamamos circunscrições, quem propõe os candidatos. Uma vez eleitos, segue-se o sufrágio dos delegados às Assembleias Municipais do Poder Popular, e são estas quem propõe aos eleitores do respectivo território os candidatos às Assembleias Provinciais e à Assembleia Nacional do Poder Popular. Antes de assumirem há nova consulta e só então podem exercer os respectivos mandatos. Por outro lado, cada organização de massas do país propõe à Comissão Eleitoral Nacional os seus representantes, que depois são eleitos ou não por uma determinada zona do país.
Daqui vamos explicar a composição da nossa Assembleia Nacional. Nela estão representados todos os sectores da sociedade, desde os intelectuais cubanos aos camponeses que cortam cana-de-açúcar no interior rural. Qualquer decisão que seja tomada é apreciada, como em qualquer parlamento, pelas comissões específicas de cada área, as quais funcionam permanentemente.
Vamos esclarecer ainda que em Cuba os deputados não são políticos profissionais, não ganham a vida como deputados, mantêm a sua profissão, razão pela qual a Assembleia Nacional reúne ordinariamente duas vezes por ano.
No Conselho de Estado, que preside à Assembleia Nacional e é o seu órgão executivo, encontramos igualmente todos os sectores profissionais e sociais do nosso país, para além de alguns ministros e do próprio presidente, ali eleito. Neste momento não descartamos a possibilidade de Fidel voltar a ser eleito presidente do Conselho de Estado, mas isso tão pouco é central.

E como é que funciona a relação entre o Estado e o Partido Comunista de Cuba?

Em Cuba nunca existiu a separação entre o Partido e as massas. Todos os dirigentes do Partido têm contacto quotidiano com o povo. Auscultam, transmitem as ideias, as preocupações, as críticas, e fazem-no para que a opinião colectiva pese na tomada das decisões.
A nossa constituição foi aprovada por 98 por cento. Há alguns anos fizemos outro referendo constitucional onde propusemos a irreversibilidade do socialismo Foi também aprovado pela esmagadora maioria nas urnas. Isto quer dizer que o povo decidiu livremente que o Partido Comunista de Cuba e os trabalhadores deveriam assumir o papel de vanguarda e direcção da revolução.
Temos para nós, portanto, que ao PCC cabe o papel de vanguarda, mas atenção que o partido não integra quem quer, temos um processo de recrutamento baseado no prestígio e autoridade moral no seio do povo, evitando fenómenos de oportunismo.
As organizações de massas do país também reconhecem o papel de direcção do partido. Por exemplo, eu já estive em várias organizações juvenis, desde o ensino secundário à universidade. Somos autónomos, independentes, mas reconhecemos à Juventude Comunista o papel de vanguarda e direcção, e por isso consultamos e somos consultados abertamente. È a isto que nos referimos quando falamos de unidade, coesão indissolúvel desde a base até ao topo.
Mais uma prova de democracia sustenta-se no facto de qualquer representante poder ser destituído pelo povo a qualquer momento da legislatura, sempre que a sua representação não corresponda ao decidido nos processos de avaliação e discussão aos diversos níveis.

Solidariedade sem fronteiras

Cuba sempre foi solidária com os povos e com a sua luta emancipadora. O projecto ALBA faz parte dessa prática na América Latina e no Caribe?


Sempre estivemos empenhados na luta pela liberdade e pela soberania dos povos. Quiçá algumas das páginas mais gloriosas da nossa história se tenham escrito no auxílio aos que combatem a miséria, a exploração. Sermos solidários entre nós e com os demais é idiossincrático.
Mesmo depois do desaparecimento da URSS, mesmo nos anos mais duros do período especial, nunca deixámos de ajudar. Falamos com orgulho dos mais de 20 mil médicos que trabalham junto do povo venezuelano e de outros milhares em todo o mundo. Mantemos missões de educação e alfabetização espalhadas por todos os continentes.
A Alternativa Bolivariana para a América Latina é uma proposta de integração contrária à política neoliberal proposta pelos EUA para o subcontinente. Com a ALBA pretende-se resgatar os valores mais puros da integração, da luta contra a pobreza e a exclusão social, contra o subdesenvolvimento e a dependência externa. Não tem como objectivo o lucro, é um instrumento para a melhoria das condições de vida das pessoas.

Mas à margem da ALBA, Cuba tem vindo a estabelecer laços multilaterais de investimento no país, sobretudo na área do turismo. Que consequências teve essa política?

Digo-te desde logo que nos últimos anos a prioridade era salvar a revolução. Tínhamos noção das consequências, mas era fundamental manter o processo transformador e garantir a sua sobrevivência. O turismo é um sector muito importante na economia cubana, com resultados altamente satisfatórios.
Tudo isto trouxe oportunidades. Algumas pessoas adquiram um nível de vida superior à média. Contactam com turistas, manejam divisa, e assim surgiu um sector profissional altamente qualificado.
Temos que avançar pouco a pouco sabendo que o objectivo é alcançar a igualdade, mas não pensemos que é de um momento para o outro que voltamos à década de 80, quando em Cuba todos tinham condições de vida e de trabalho semelhantes. Lá chegaremos, certamente, porque esse é o nosso objectivo.
Paralelamente, iniciamos um intenso trabalho junto das organizações de massas visando elevar a consciência política e a capacidade de resposta colectiva, medida a que juntámos investimentos em três áreas fundamentais: a educação, a saúde e a cultura. Elas são a base de sustentação da batalha das ideias.
Por outro lado, combatemos activamente a corrupção, os fenómenos de oportunismo desde a base às mais altas esferas do Estado, linha que levamos por diante a par duma política de poupança e combate ao desperdício.
Ainda não é possível dizer que o país deixou para trás o período especial, mas as condições de vida melhoraram muito, fruto, sobretudo, das orientações terem sido assumidas e concretizadas colectivamente e dos benefícios serem repartidos por todos.
Neste capítulo da reconversão das estruturas, da importação de bens para benefício colectivo, não podemos esquecer que, resultado do bloqueio contra Cuba que dura há mais de quatro décadas, as empresas, as nações, estão impedidas de nos venderem o que quer que seja, basta para tal que o produto tenha um componente produzido nos EUA, fabricado por uma empresa norte-americana ou por uma sua subsidiária.
Isto tem custos sérios. Não só os preços disparam, como é ainda praticamente impossível encontrar uma empresa que não tenha um vínculo com uma multinacional norte-americana.

O partido e o futuro

Fidel disse uma vez que «os homens morrem, mas o partido é imortal». O Partido Comunista de Cuba está a preparar quadros para o futuro?


Bem, primeiro dizer que vou falar de uma formação política da qual não sou membro. Em todo o caso, penso que no futuro vamos prosseguir o caminho da revolução, do socialismo, sem a geração de dirigentes que tornou possível a transformação social e a independência do nosso país.
O trabalho que fizeram deixou raízes muito fundas, sobretudo entre a juventude, que é mais culta que nunca, é capaz de compreender qualquer situação política e está consciente do papel que lhe cabe, não apenas para a sobrevivência da nossa opção revolucionária, mas também da humanidade, na medida em que o mundo é hoje muito mais perigoso, mais desigual, e, neste contexto, exige mais dos jovens na condução dos destinos colectivos.
Sabemos também que o pior dos erros é desligarmo-nos das massas, criar um aparelho acima da vida quotidiana, das dificuldades, por isso combatemos essa prática, por isso na escola ou na empresa está sempre a organização comunista, para combater o conformismo e estimular a reflexão.

Achas que as novas gerações estão preparadas para assumir esse papel de direcção?

È um grande desafio, mas penso que estamos preparados até porque a direcção histórica nos proporcionou as ferramentas necessárias, desde logo a cultura, o conhecimento, que como dizia Martí, é o primeiro passo para podermos ser livres.
Todas as transformações que o país viveu nos últimos oito anos levou o povo a comprometer-se ainda mais com o rumo escolhido, com a nossa opção soberana. Os programas desenvolvidos são extremamente positivos, mas apesar de tudo não estamos satisfeitos, queremos mais e melhor, o que nos obriga ao empenho, há busca de objectivos mais audazes de igualdade, de unidade, de justiça. O trabalho da juventude não se detém e a revolução pertence cada vez mais aos jovens.

Com o patrocínio dos EUA
Terrorismo sem tréguas

Cuba tem sido alvo de inúmeros actos de terrorismo promovidos a partir de Miami pela máfia anticubana, e quando desmontaram uma dessas intentonas, os EUA encarceraram os cinco heróis. Como comentas esta política de dois pesos e duas medidas?

Cuba está obrigada a proteger-se do terrorismo que opera impune a partir de Miami, causando milhares de vítimas durante todos estes anos de revolução.
No que aos cinco camaradas detidos diz respeito, entregámos a informação recolhida aos norte-americanos e eles não detiveram os mentores do terrorismo, mas os cinco jovens que tão valorosamente resistem a duras penas e a violações dos direitos humanos: privação de liberdade em condições extremas; restrições no contacto com os advogados de defesa, com os diplomatas cubanos e com as famílias; ocultação de 80 por cento das provas da acusação e manipulação dos jurados durante a audiência; manutenção do julgamento em Miami, etc.
A tudo isto, contrapõem-se a liberdade de Posada Carriles, conhecido terrorista internacional que tem uma extensa carreira ao serviço da CIA. Carriles foi responsável pelos actos terroristas contra as sedes diplomáticas de Cuba no México, em Nova Iorque, em Portugal, e pelo atentado contra o avião da Cubana Aviacion, que vitimou 76 pessoas.


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