O luxo inútil

Correia da Fonseca
Aquela emissão do «Prós e Contras» estava talvez destinada a ser o topo da glória do programa e, consequentemente, da sua apresentadora: calcula-se que só presidentes eram três (é sabido que quem foi presidente uma vez fica presidente toda a vida no plano do prestígio e da cortesia sociais), sendo que um deles está em exercício, tanto e de tal modo que nem pôde misturar-se com os outros: ficou do lado oposto do palco, isolado, não fosse haver algum contágio ou excesso de confraternização. Infelizmente, porém, tanto luxo resultou num programa longo, mas chato e inútil. Não se dirá que não serviu para nada. Serviu para que nos certificássemos de que Durão Barroso está em boa forma na modalidade que a gente ignara é capaz de designar por paleio; que Jorge Sampaio continua simpático, bem-educado e talvez crédulo; que a Mota Amaral talvez vá faltando a santa paciência para aturar jornalistas espevitadas, no que aliás terá estado acompanhado por Sampaio. E serviu também para sabermos que, pelos vistos, Fátima Campos Ferreira descobriu finalmente um comunista que pensa ou que pelo menos pode ser colocado ao lado de «pensadores». Aliás, o comunista admitido por Fátima no seu tão selectivo programa provou pensar tão bem e explicar-se tão eficazmente que a «moderadora», aparentemente assustada, decidiu transferir subitamente a área da conversa da Economia para a Cultura, na provável expectativa de que o economista Carlos Carvalhas fosse culturalmente menos sabedor e brilhante. Mas o golpe de leme chegava tarde: Carvalhas já havia claramente denunciado a linha de rumo neoliberal imposta à Europa pelos poderes dominantes, ignorando a provocaçãozinha reles que Fátima lhe lançara ao tentar interrompê-lo perguntando «desde quando» Carvalhas (e obviamente o PCP) era a favor da União Europeia. A dama, que até é trabalhadora e estudiosa, não ignora decerto que os comunistas portugueses sempre foram por uma Europa unida, sim, mas unida pela solidariedade e pelo bem-estar dos povos, não pela gula e pelos interesses das grandes empresas e do capital financeiro transcontinentais. Por outras palavras: Fátima terá usado de alguma má-fé para fazer prova pública de que está vigilante quanto a supostas mudanças na atitude comunista. Para seu mal, porém, Carlos Carvalhas não é dos que gastam trocos miúdos com espertalhices rasteiras e mal a ouviu.

Especificidades

A palavra «neoliberalismo», introduzida por Carvalhas quando pôde intervir, teve um efeito esperável, pois os que têm por missão justificar esta Europa que esmaga a generalidade dos europeus não gostam de palavra tão mal reputada. Por isso Durão Barroso explicou que não se trata de neoliberalismo mas sim de uma coisa outra e apetitosa: economia social de mercado, especificidade culinária europeia. Infelizmente, tal como pelos frutos se conhece a árvore e não pela imaginação vocabular de botânicos, também pelos efeitos se conhece a radicação sociológica/económica/financeira das causas, e os efeitos aí estão a ser sentidos pelos europeus: desemprego crescente; liquidação dos direitos humanos conquistados ao longo de décadas e que consubstanciaram, esses sim, a especificidade europeia; fusões empresariais sempre no caminho de um gigantismo que é pago pelo crescente empobrecimento dos povos; intensa ofensiva ideológica contra a Esquerda, ou tudo quanto Esquerda pareça, complementada e reforçada por uma intensa barragem mistificatória e alienatória conduzida pelos media que o grande capital ocupou. Desta realidade, que é a realidade de uma Europa verdadeiramente escravizada, é que teria valido a pena ouvir falar, mas não estavam para aí voltados os senhores presidentes nem, já se vê, o teria consentido a jornalista «moderadora», pois «moderar» é muitas vezes velar para que o trânsito não enverede por caminhos desaconselháveis. Por isso, este «Prós e Contras», longo e tão bem frequentado, foi uma maratona inútil. Nem sequer ali se falou com o mínimo vagar da tentação de obter a ratificação do minitratado em gestação, edição «pocket» da falecida «Constituição europeia», não pela aprovação popular em referendos mas sim por mera votação parlamentar, pois, como bem se sabe, gente fina é outra coisa. Quanto a este ponto, alegou Durão que a aprovação parlamentar tem a mesma legitimidade. Mas ele bem sabe, é claro, que a legitimidade formal serve muito bem para contrabandear ilegitimidades profundas que o são por contrariarem o direito democrático dos povos de decidirem o seu destino. E dizer isto não corresponde a chamar contrabandistas de ilegitimidades aos senhores deputados dos diversos países da UE. Mas bem se sabe que, como disse o outro, que «los hay, hay».


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