Descentralização da Acção Social para as autarquias

Um presente envenenado

Anselmo Dias
Invocando o âmbito da nova Lei das Finanças Locais (Lei 2/2007) que criou o Fundo Social Municipal, bem como o conteúdo da Lei 159/99, que estabeleceu o quadro de atribuições e transferências para as autarquias locais, o Governo pretende, num espaço temporal de 10 anos (2007/17), num propalado diálogo com a Associação Nacional de Municípios, a CNIS, a União das Misericórdias e a União das Mutualidades, transferir para a esfera das autarquias a Acção Social actualmente inserida no Sistema Publico de Segurança Social.
Para tal objectivo o Governo calendarizou um conjunto de iniciativas com o propósito de fazer incluir já no próximo Orçamento de Estado um conjunto de transferências cujo âmbito social e valores financeiros, na deriva liberal do PS, poderão vir a afectar uma parte significativa da população portuguesa.
Importa, pois, saber do que falamos quando falamos de transferências para as autarquias daquilo que, presentemente, compete ao Governo na área da Acção Social.
Para uma análise séria do assunto em apreço nada melhor do que colocar seis questões e tentar responder a cada uma delas.
A 1.ª questão prende-se com a evolução das despesas com a Acção Social.
Há uma ideia instalada na sociedade de que, no contexto das despesas com o Sistema Público de Segurança Social, têm sido os encargos com as pensões e reformas aquelas que mais cresceram em termos percentuais.
Não é verdade. As despesas que mais têm crescido têm sido as decorrentes da Acção Social que passaram de cerca de 436 milhões de euros em 1995, para os cerca de 1517 milhões de euros orçamentados para 2006.
Estamos a falar de um crescimento médio anual na ordem dos 12%, muito superior ao verificado nos encargos com as pensões e reformas.
Este valor médio anual, aparentemente alto em valores percentuais mas baixo face às necessidades da população, levanta uma questão. O Governo está na disposição de, dadas as carências dos estratos sociais mais desfavorecidos, sobretudo o universo dos 2 milhões de pobres existentes em Portugal, de manter o ritmo de crescimento desse encargo ou, ao invés, a pretexto da redução do déficit orçamental, reduzi-lo substancialmente adequando-o ao débil crescimento do PIB?
Esta questão levanta uma outra que é a seguinte: Quando o Governo pretende transferir a Acção Social para a esfera das autarquias não estará, por esse facto, a indexar o valor dos encargos sociais às transferências normais para o Poder Local? A ser verdadeira esta opção o Governo mais não pretende do que reduzir tais encargos, diluindo-os nas transferências normais, utilizando, para o efeito (leia-se: tramóia), o poder local em tal desiderato como aconteceu com o apoio da UGT no que diz respeito à redução do valor das reformas «negociado», dizem eles, em «concertação social».
A 2.ª questão tem a ver com o âmbito da Acção Social.
Quando falamos do âmbito da Acção Social falamos de várias coisas, simultaneamente convergentes. Para nós trata-se de um direito que decorre do espirito e da letra da Constituição, designadamente os seus Artigos 67.º a 72.º referindo cada um deles os seguintes temas: família, paternidade e maternidade, infância, juventude, cidadãos portadores de deficiência e terceira idade. Acresce a isto todas as situações decorrentes de doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, desemprego, falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, a par de outras variadas e complexas situações causadoras da chamada «exclusão social». Quando falamos de tudo isto falamos do direito de cidadania em que o Estado, face à lei, confere algo a uma pessoa sem que esta seja obrigada a estender a mão e a curvar-se perante o dador de uma esmola. A Acção Social está intimamente ligada à dignidade humana numa relação que se quer directa entre o Estado e o cidadão sem que entre eles existam, no interesse do capital e de confissões religiosas, «intermediários», uns numa perspectiva de lucro, outros na valorização da caridade e da resignação salvo, naturalmente, as instituições que, desinteressadamente, confluem solidariamente na resolução dos problemas atrás referidos. A Acção Social tem, pois, um conteúdo ideológico cuja interpretação é determinada pela natureza da consciência de classe de cada grupo social. Para nós, comunistas, a Acção Social é, repetimos, um direito Constitucional a ser concretizado no âmbito do Sistema Publico de Segurança Social, financiada pelo Orçamento de Estado e suportado pelos impostos que cabem a todos os residentes em Portugal. É certo que a nova versão das Bases Gerais do Sistema Público de Segurança Social, aprovada, previamente, pelo patronato e pelo seu apêndice que dá pelo nome de UGT em sede de «concertação social» e, posteriormente, pelo PS, na Assembleia da República, introduziu a possibilidade da intervenção do Poder Local no desenvolvimento da Acção Social, a pretexto de uma maior proximidade dos cidadãos, ao mesmo tempo que se valorizou a intervenção do voluntariado social, a fazer lembrar os tempos em que o Movimento Nacional Feminino ofertava medalhinhas da Nossa Senhora aos soldados que iam combater na guerra colonial.
A Acção Social, nos termos legalmente vigentes, tem como objectivo a «prevenção e reparação de situações de carência e desigualdade sócio-económica, de dependência, de disfunção, exclusão ou vulnerabilidade sociais». Acrescem, ainda, a «especial protecção aos grupos mais vulneráveis, nomeadamente crianças, jovens, pessoas com deficiência e idosos bem como a outras pessoas em situação de carência económica ou social».
Pois, bem: perante a dimensão desta caracterização estará o Poder Local em condições de desenvolver a Acção Social? Vejamos, a este propósito, os dados constantes do Quadro I.

A dimensão e capacidade das autarquias

A 3.ª questão a que importa responder refere-se à dimensão e capacidade das autarquias. Em 2002 a população em Portugal estava avaliada em 10 407 465 residentes. Onde residiam essas pessoas?
Como se vê no Quadro I, no conjunto dos 308 concelhos do País, apenas 24 têm mais de 100 000 habitantes, alguns dos quais ainda não resolveram problemas básicos, como seja o acesso à rede pública de esgotos. No concelho de Barcelos, de acordo com o último censo, apenas 23% da população residente tinha acesso à referida rede. Quanto ao acesso à água canalizada no alojamento proveniente da rede pública, também de acordo com o último censo, apenas 68% da população da zona Norte beneficiava desse bem primário. O que queremos dizer com isto ? Queremos evidenciar que problemas típicos do Poder Local ainda não foram, em certas regiões, resolvidos, pelo que seria de todo extemporâneo alijar para cima dessas autarquias problemas de grande complexidade e que envolvem vultuosos meios financeiros, técnicos e humanos. Mas mesmo que todos os problemas típicos do poder local fossem resolvidos, mesmo assim, é nossa convicção que apenas uma pequena minoria das autarquias poderia dispor de algum know-how compaginável com as várias valências inseridas no amplo conceito da Acção Social, embora lhe faltasse, para o efeito, o fundamental: os adequados meios financeiros. É por esta razão que nos documentos já elaborados, no contexto da transferência da Acção Social para o Poder Local, se desenvolvem teorias que tal actividade pode ser exercida, ou directamente pelas autarquias, ou pela concessão, ou pelo sector privado. Sobre isto está tudo dito. Eis mais um nicho de negócio disponibilizado à iniciativa privada, ou seja, aos mesmos que criam as condições de pobreza existente entre nós. No fundo trata-se de «dar o ouro ao bandido» como a seguir se demonstra.

As causas e as consequências

A Acção Social reflecte, não totalmente, mas em grande medida, todos os factores (e esta será a 4.ª questão) que conduzem à pobreza. Esta, como todos nós bem sabemos, não é uma «coisa natural», caída do céu mas, antes, uma construção humana, determinada por múltiplos factores de que se salienta: a natureza e a estrutura do Estado, a titularidade da propriedade e o sistema económico, o modelo de desenvolvimento, a importância do trabalho com direitos, incluindo o salário justo, as funções sociais do Estado, a distribuição da riqueza, o regime fiscal e, naturalmente, o conceito de cidadania. Quando todos estes valores (e outros a eles associados) estão subalternizados, quer à economia de mercado, quer ao ferrete ideológico dos governos do PS, PSD e CDS é óbvio que daí resultam gravíssimos danos sociais, perfeitamente tipificados no seguinte nível de concentração de riqueza: em Portugal, no ano de 2004, o rendimento dos 5% dos agregados familiares mais ricos equivalia, em sede de IRS, ao rendimento de cerca de 60% dos agregados familiares mais pobres, o que indicia que as assimetrias sociais em Portugal são bem mais acentuadas do que os cálculos do departamento de estatística da União Europeia. Era, pois, aqui, nesta e noutras causas similares, que o Governo devia, à priori, actuar, valorizando quem, verdadeiramente, cria a riqueza: os trabalhadores. Coubesse aos trabalhadores uma parcela mais importante do produto interno bruto, quer sob a forma directa de salários mais elevados, quer sob a forma de funções sociais mais dignas, sobretudo na área da saúde, do ensino, da segurança social, da cultura, a par de um bom ambiente infra estrutural, e, em contrapartida, aos capitalistas uma menor mais valia e, seguramente, muitos dos problemas que se colocam no plano da Acção Social não existiriam, na justa proporção da diminuição das causas geradoras da pobreza e da exclusão social. Mas como o Estado Português é, simultaneamente, omisso relativamente aos trabalhadores e omnipresente na defesa do capital o resultado é aquele que se vê: um País profundamente assimétrico ao qual se destina a simbólica verba de 1% do PIB para a Acção Social. Este Estado omisso co-responsável pelas causas geradoras da pobreza e da exclusão social tem, ao seu dispor, um instrumento sério para resolver uma parte significativa de tudo o atrás referido: o cumprimento da Constituição. Não o querendo fazer «chuta» para as autarquias aquilo que é da sua competência. Trata-se de um presente envenenado cujo dador sabe, de antemão, que os destinatários não têm meios financeiros, técnicos e humanos para resolver tal direito constitucional. Mas esse dador também sabe que há muitos autarcas dispostos a, inicialmente, receber tais transferências para posteriormente as reenviar para a iniciativa privada.

A realidade social na base dos salários

De acordo com as últimas estatísticas disponibilizadas, quer pelo Eurostat quer pela Unicef, é possível quantificar, de uma forma desagregada, em valores aproximados, o nível da pobreza nos seguintes termos:
· trabalhadores: cerca de 591 000;
· pessoas com mais de 65 anos: cerca de 486 000;
· crianças e jovens: cerca de 320 000;
· outras situações: (reformados e pensionistas com menos de 65 anos, desempregados, famílias mono parentais, imigrantes) cerca de 600 000.
Em função das causas geradoras da pobreza e a sua correlação com a Acção Social impõe-se (e assim chegamos à 5.ª questão) que, a par de um conhecimento global, haja um conhecimento mais detalhado, por exemplo a nível concelhio, começando, naturalmente, pelos salários dado a indexação a estes do valor das reformas, dos subsídios de desemprego e de doença, subsídios que, pelo seu reduzido valor, contribuem para o baixo índice de poder de compra das populações.
Os dados em nosso poder referem-se ao sector privado da economia, relativos aos Quadros de Pessoal reportados a Outubro de 2002. Embora, em termos globais, existam dados mais recentes, a listagem desagregada de que dispomos, a nível concelhio, constitui os últimos elementos disponíveis. O que importa salientar neste estudo não é tanto o valor absoluto em si mas a hierarquização dos salários em termos concelhios e a sua comparação com o número de trabalhadores, a população residente e o índice de poder de compra.
Em termos globais a situação era a constante no Quadro II.
Dado que, na altura, o ganho médio mensal era de 817 euros podemos concluir o seguinte:
· apenas 1 065 719 trabalhadores do sector privado da economia (cerca de 37% do total) residiam nos 25 concelhos com ganhos médios mensais superiores à média nacional;
· por outro lado, 1 782 171 trabalhadores (cerca de 63% do total) residiam nos 283 concelhos com os salários médios inferiores à média nacional.
Daqui decorre que não basta inventariar as estruturas existentes em cada região, como resulta dos estudos preparatórios para a transferência da Acção Social para as autarquias. Mais importante que inventariar os edifícios e os meios técnicos actualmente adstritos à Acção Social é inventariar as situações sociais, começando por aquilo que é determinante: os salários.

O índice de poder de compra da população

Da mesma forma que a transferência da Acção Social para as autarquias devia ter em conta aquilo que é a realidade existente a nível salarial, o mesmo devia acontecer quanto ao índice de poder de compra concelhio (IPC), o que nos leva à 6.ª questão.
O referido índice, calculado pelo INE nas base de vinte variáveis, constitui um libelo contra os governantes que formataram um país onde apenas cerca de 1/3 da população vive em concelhos onde esse índice é superior à média.
Para se ter uma ideia das diferenças existentes no que concerne ao IPC veja-se os dados constantes do Quadro III.
Como se vê, cerca de sete milhões de portugueses residem em concelhos cujos índices de poder de compra estão abaixo do valor médio atribuído ao país, com especial destaque para os 29 concelhos mais pobres, a maior parte dos quais se localiza a Norte do concelho de Viseu, entre o rio Vouga e o Douro, bem como a Norte de Vila Real até à fronteira com a Espanha, sem esquecer os baixos índices de poder de compra em outras regiões, designadamente os vários concelhos da Madeira e em Alcoutim, no Algarve. Se compararmos os índices de poder de compra com os salários praticados constataremos que, não obstante não termos entrado em linha de conta com os funcionários públicos, há uma perfeita sintonia entre eles, donde o itinerário do baixo nível de vida corresponde ao itinerário dos baixos salários, das baixas reformas, das baixas prestações sociais e de uma realidade demográfica fortemente influenciada por um elevado nível de envelhecimento. A Acção Social segue também este itinerário. Resolvendo-se tais causas resolver-se-iam muitas das suas consequências. E isso cabe ao Governo, não às autarquias, pelo que a intenção do PS em tal transferência não é mais do que um presente envenenado.
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