Odete

Correia da Fonseca
Nunca tal se vira: todos os deputados à Assembleia da República a aplaudiram, de pé, uma deputada que partia. E não uma deputada qualquer, discreta ou amiga de fazer vontades políticas, propensa a estar de acordo com aquele e também com este: tratava-se de uma deputada comunista acerca de cujas firmes convicções nunca houve pretexto para que houvesse a menor dúvida, polemista veemente e intransigente, de quem bem se poderá ter dito que era dogmática e fundamentalista sem que ela própria se importasse com isso. Ela bem saberá que, em bocas adversárias, essas qualificações têm o implícito significado de fidelidade aos princípios e recusa de convidativos atalhos que nunca se sabe bem onde vão dar. E, contudo, aí estavam eles, os colegas deputados de todas as bancadas, de pé, a aplaudirem Odete Santos, isto é, a aplaudirem a firmeza, a competência, a verticalidade. De uma deputada comunista. Também, decerto, as qualidades humanas, o sentido de camaradagem para lá dos diferentes posicionamentos políticos. No caso, porém, esses méritos estritamente pessoais seriam insuficientes para uma tão impressionante manifestação de generalizado apreço. Em dado momento, Odete falou de reconhecimento pela sua autenticidade numa tentativa, aliás modesta, para justificar aquela espécie de apoteose. Autenticidade, sim, a palavra justifica-se e aceita-se, mas com a condição de nela estar contido tudo quanto Odete Santos mostrou ser: comunista fiel à sua opção e justificadamente orgulhosa dela, intransigente relativamente a quanto contrariasse as razões que defendia, exprimindo-se com linguagem e argumentos singularmente identificados com o sabor a povo, ao povo que ali, no Parlamento, representava. Bem se pode dizer que deputados há muitos (mas não de mais, ao contrário do que a direita assumida e a outra, a envergonhada de si própria, andam agora a propalar), mas como Odete Santos não havia mais nenhum, por muitos outros méritos que concorram em alguns dos restantes, comunistas ou não, acrescenta-se, para que não fique aqui motivo para a suspeita de que se considera que só os comunistas é que são honrados e justos. Ainda que, confesse-se, quando se é comunista é mais fácil reunir estas e outras virtudes.

Diferença e prestígio

O aplauso de pé de todo o Parlamento foi um impressionante momento de TV, e por isso se justifica o seu registo nesta dupla coluna. A imprensa noticiou depois que houvera uma recusa: o dr. Portas saíra do hemiciclo momentos antes, mas em verdade não se lhe notou a falta e talvez até tenha sido melhor assim porque isto de palmas é como tudo, nem todas são desejáveis. Mas a emoção suscitada pela partida de Odete, pelo seu comovido «-Até amanhã, camaradas!», pelo impacto que o facto produziu nos cidadãos das mais variadas opções políticas e também nos que supõem não ter opção política nenhuma (o que, já se vê, é também uma opção não-consciente e um equívoco) prolongou-se na televisão por força de entrevistas que vários canais fizeram a Odete Santos por altura dos telenoticiários da noite. E, quanto a estas, apercebamo-nos do que as motivou: as estações não decidiram pedir-lhas para serem simpáticas a uma deputada comunista e/ou ao partido por que ela havia sido eleita; pediram-lhas por saberem que Odete Santos se tornou uma figura popular no melhor sentido da palavra, respeitada e admirada em todas as suas peculiaridades. Tentando utilizar uma fórmula próxima dos critérios que nas operadoras de televisão regem estas coisas de convites para entrevistas direi que Odete Santos «tem público» e gera audiências. E o interessante, para não dizer que o maravilhoso, é que Odete sempre geriu essa sua popularidade, que obviamente não lhe passou despercebida, utilizando-a para reafirmar as suas convicções e as razões do Partido, nunca para proveito próprio. Por vezes, houve mesmo que ultrapassar algumas deslealdades pois, afinal, sendo comunista, tem de pagar algum preço por isso. Por exemplo: quando referida a sua actividade paralela no teatro, sempre as estações transmitiram imagens da sua breve intervenção no teatro de revista, mas não imagens de trabalhos seus em peças como «Quem tem medo de Virgínia Wolf?” de Edward Albee que, contudo, também foram fixadas a seu tempo pelo menos por uma operadora. Mas estas pequeninas maldades não beliscaram sequer o prestígio de Odete e aquilo a que é costume chamar carisma. Por uma definitiva razão: porque Odete Santos não é apenas diferente: é diferente e melhor do que o comum das gentes. Por mais que este facto seja por ela própria recusado.


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