Manobras para um assalto

Correia da Fonseca
Voltou. Volta de vez em quando, ciclicamente, a reivindicação de que a RTP seja privatizada. Agora estará a ser formulada pelo PSD ou pelo dr. Pinto Balsemão ou por ambos. O dr. Balsemão sustenta a reclamação com o argumento do costume: «concorrência desleal». Há uns tempos atrás já foi retirada à RTP uma parte do bolo publicitário e entregue às privadas, mas a gula do dr. Balsemão é insaciável, pelo menos nesta matéria. Também já foi convincentemente demonstrado que o argumento da alegada concorrência desleal é inconsistente, mas quem quer acabar com a RTP como operadora pública de televisão pouco se importa com isso. Porque, para lá do apetite empresarial, a proposta de privatizar a RTP radica na área ideológica, o que até tem graça por vir dos que sempre estão a acusar os outros de motivações meramente ideológicas mesmo que se trate apenas de defender a justiça, a decência ou apenas a legalidade. Na verdade, para o empresariado de que o dr. Balsemão é figura paradigmática, tudo o que ainda esteja no sector público deve ser privatizado em obediência a razões singelas mas irrecusáveis: o Estado é por natureza mau e o sector privado é por natureza bom, o Estado faz mal e devagar e os privados fazem bem e depressa, o Estado vive de parasitar os cidadãos e o sector privado vive do trabalho intenso e da genialidade dos seus gestores. Os que porventura se atrevam a alegar que o sector empresarial privado se nutre da exploração dos trabalhadores graças à ditadura dos salários «moderados» e de formas suaves de extorsão dos consumidores graças ao clima de consumismo ávido que é suposta marca de modernidade arriscam-se a levar roda de comunistas e a serem tratados como tal. Aliás, também a reclamada privatização da RTP tem tudo a ver com esse entendimento de modernidade como situação em que tudo o que é interessante há-de pertencer apenas a alguns sob o pseudónimo de Sector Privado e não a todos sob a designação colectiva de Estado. Ora, a RTP, empresa pública, é um naco que interessa. Logo, é quase sacrílego que ainda não esteja privatizada.

Caçadores de cabeças

É certo que, para além do argumento um pouco ridículo e de boa-fé altamente duvidosa que é o da «concorrência desleal», a posse da RTP não parece justificar fortes apetências: aquilo não é um grande negócio, não há sinais de que algum dia o venha a ser, e não é costume que o sector privado viva a sonhar com a propriedade de uma carga-de-trabalhos. Porém, não é preciso ser sábio nem desentranhar-se um sujeito em complexas reflexões para se dar conta de um ou dois motivos plausíveis. Um deles é o risco sempre presente de uma televisão pública com qualidade e utilidade nacional que constituiria uma denúncia óbvia ao telelixo que em larga medida tem vindo a ser a triste imagem de marca da TV privada, aliás não só em Portugal. Outro motivo é ainda mais grave e aparentemente, mas só aparentemente, não tem nada a ver com negócios e dividendos: a televisão é hoje a mais eficaz ferramenta condicionadora e manipuladora das cabeças das gentes; é ela que «manda» não apenas o que o cidadão tem de comprar, tenha ou não dinheiro para isso, mas também o que deve pensar do País e do mundo, da política actual e dos bons velhos tempos em que «não havia política», dos partidos saudáveis e democráticos e desse grupo em vias de extinção (há décadas, aliás), que é o PCP. Por outras palavras, digamos que a TV é a grande arma de «combate de ruas» no quadro da batalha ideológica que permanentemente se trava. Que tão precioso, decisivo trunfo, ainda não esteja inteiramente na posse do grande empresariado é qualquer coisa de insuportável. Não que, mesmo enquanto operadora pública, a RTP se porte muito mal: é sabido que por lá o trânsito de comunistas ou de gente que com comunistas se pareça está muito condicionado, que os telenoticiários são substancialmente influenciados pelos fluxos informativos que vêm do outro lado do mar, que até ainda lá subsiste alguma má vontade contra as independências africanas do nosso defunto «Ultramar». Ainda assim, porém, os que nesta matéria lideram o sector privado entendem, e com razão, que ainda não há nada como ter uma TV nas mãos. Estarão então em situação óptima para fazerem a gestão «livre» e «independente» das quantidades de lixo, de veneno e de maquilhagens que hão-se ser ministradas. De onde a reivindicação. Talvez na esperança de que o Governo PS, agora sob algum fogo da direita sempre insaciada, queira ser-lhe simpático. Como, bem se sabe, tantas vezes tem sido.


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