
- Nº 1740 (2007/04/5)
Aniversário e memória
Argumentos
A televisão traz-nos notícia, e notícia alongada, de mais um aniversário. Desta vez não se celebram cinquenta anos, como no caso da RTP e da EU retrotraída à data do Tratado de Roma, mas ainda assim parece ser coisa importante: trata-se dos quinze anos da Disneylândia. Não da Disneylândia da Califórnia, que essa, sim, já é cinquentona desde 2005, mas sim da Disneylândia de Paris, inaugurada já quando a própria Disney, feita multinacional poderosa, mal se lembrava do tom um pouco ingénuo mas também tocado de ternura dos anos heróicos do velho Walt. No ecrã do televisor deslizam imagens do cortejo festivo que celebra os quinze anos, e parece-me quase chocante a desumanização dos cabeçudos que no desfile se esforçam por passar pelas figuras vivas do Mickey, do Donald, do Pluto, do Pateta. Nos desenhos de Walt Disney e dos seus colaboradores ao longo da década inicial do seu trabalho, bonecos apenas a duas dimensões, havia um permanente toque de humanidade que era o seu decisivo mérito e o mais forte factor de sedução. Agora, nestes mascarados a três dimensões sob cujas máscaras podemos adivinhar uns desgraçados que para ali andam a ganhar a vida como podem, há qualquer coisa de monstruoso que pode repelir-nos. Quase me apetece inferir que a diferença marca a distância entre a ainda relativamente pequena empresa onde um sonho se afirmava e uma transnacional que ao crescer adulterou o percurso inicial injectando-lhe elementos de duvidoso gosto, afinal pervertendo-se. De qualquer modo, em relação aos mascarados do cortejo dizem-me que a miudagem gosta, que não detecta aquilo que me parece uma falsificação ou que pouco se importa com ela, e com isso fica absolvido esta concreta vertente do negócio. Nem, é claro, a vocação dos garotos é a detecção desta falsificação ou de qualquer outra. Mas entenda-se que para os que um dia se enterneceram com as apenas duas dimensões do Bambi, do Dumbo ou mesmo dos anões da Branca de Neve, as coisas têm um sabor diferente porque a sua experiência anterior lhes impõe não apenas uma rejeição das figuras do desfile mas também, o que será mais solidamente justificado, da totalidade, ou quase, dos produtos da Disney Corporation nas décadas mais recentes. Resta que essa avaliação é muito mais no âmbito da crítica de Cinema que de uma coluna onde o tema é a TV, pelo que o mais prudente será ficar por aqui.
Saudades de Vasco Granja
Porém, nostalgia por nostalgia (pois também nessa área há as lúcidas e as equivocadas, as justificáveis e as tontas), impõe-se-me o registo de uma outra que a visão dos festejos da Disneylância de Paris veio despertar: a de uma animação diferente e a vários títulos melhor que os telespectadores portugueses puderam conhecer, ao longo de anos, graças ao generoso e eficaz trabalho de Vasco Granja. Eram bonecos, sim, mas dir-se-ia que animados por uma alma diferente da que caracterizava os que então nos chegavam do outro lado do mar: com ternura em vez de agressividade, com um sopro solidário em vez de um furacão de competitividade instalado nos quatro cantos das breves narrativas, com uma respiração à medida de uma humanidade tranquila e não um ofego de tropel belicoso. Se bem me lembram, e espero que todos se lembrem, a própria alocução de Vasco Granja partilhava a mesma serenidade saudável e educativa. No mínimo, tudo aquilo era uma alternativa desejável ao galope que a Disney e outras produtoras USA, depois reforçadas pelos autores japoneses quanto aos ritmos galopantes e muito mais ainda quanto à aposta na criação de monstros, impunham aos telespectadores infanto-juvenis e não apenas a eles. Mas, como bem se sabe, um vendaval arrasou os caminhos por onde nos chegava a animação tranquila, terna e didáctica. Constou que os lugares de onde vinha uma tão inteligente e doce programação infantil eram dominados por gente terrível, adeptos de guerras e outras violências, e por isso «implodiram» directamente ou por contágio. Se bem me lembro, eram sobretudo a agora bipartida Checoslováquia e a Polónia, agora em notório processo de depuração intensamente cristã onde até os octogenários que em tempos integraram as Brigadas Internacionais que defenderam a República Espanhola são severamente punidos. Restam-nos agora, perante as imagens da festa na Disneylândia de Paris, a memória daqueles outros bonecos diferentes e melhores. E, é claro, a saudade do inesquecido trabalho de Vasco Granja.
Correia da Fonseca