Confusionismo deliberado

Francisco Silva
Com o desenrolar do debate havido durante o processo do referendo à despenalização da interrupção voluntária da gravidez - ou seja, interrupção decidida pelas vontades das próprias -, assistiu-se, sobretudo por parte dos defensores do «não» a uma intensificação desusada da mistura - por via de regra muito abusiva - de diversos planos de argumentação: jurídico/normativo, do conhecimento nomeadamente científico, das verdades reveladas, da Ética e da Moral. Aliás, talvez como não pudesse deixar de ser, campeou este tipo de confusionismo.
Implícita sempre, neste debate, a verdade criacionista em contraponto ao que as teorias e modelos de explicação científica nos vão dizendo - implícita, em particular, através, por um lado, de uma absolutização do resultado da transmissão hereditária via genes, isto é da manutenção do status quo, versus, por outro lado, a evolução, isto é, em geral, versus a mudança.
Implícita também neste debate a luta, milímetro a milímetro, contra a Emancipação Social, via manutenção da coerção normativa/legal aplicável pelo Estado. Que - dizem - para isso é que o Estado deve existir, e não para disponibilizar serviços sociais de Educação, Saúde ou Segurança Social, que estão muito melhor nas mão da iniciativa privada. A confirmação do velho Marx sobre a natureza do Estado - mas esta matéria não participa dos objectivos que o escrevente se propôs aqui. Continuemos pois na nossa senda.
Consideremos assim, desde logo, as questões relativas à verdade revelada e/ou, mais em particular, ao criacionismo, para dizermos que elas relevam do acreditar, de uma crença, de uma fé, que é uma questão religiosa, questão de íntima convicção e, por isso mesmo, deve merecer o respeito de todos. Contudo, por esta mesma razão, por não se tratar de algo que possa ser questionado, trata-se de algo que não deve ser submetido a provas de ordem racional - uma crença existe, ponto final -, de algo que se deva socorrer, para convencer, de argumentos da ordem da razão, da filosofia ou, muito menos ainda, da ciência, sendo esta uma actividade que se exerce por específica inerência em termos de dúvida - que não de cepticismo - e, por isso, para avançar para novos conhecimentos, procura constantemente «falsificar», por à prova, os resultados já alcançados. Uma afirmação, esta nossa, que, é certo, contradiz frontalmente a ideia expressa pelo Papa Bento XVI na célebre conferência proferida em Ratisbona (Regensburg), em 12 de Setembro de 2006 - para além da polémica referência, de passagem, acerca de uma inerente relação do Islão com a violência e de ter designado Istambul por Constantinopla, referências que deram origem às reacções conhecidas -, a ideia expressa pelo Papa, dizíamos, de que «a teologia, não só como disciplina histórica e humano-científica, mas como verdadeira teologia, ou seja, como interrogação sobre a razão da fé, deve ter o ser lugar na universidade e no amplo diálogo das ciências» (1).
A outra área a considerar é a da relação entre o conhecimento científico, as suas aplicações e o «questionamento ético e moral». Com efeito, ao lidar-se com matérias que estão numa zona tão próxima do que é a essência da vida e, ainda mais concretamente, de um ser humano em gestação, é essencial reflectir-se sobre elas. Não se deve é entrar no domínio da confusão no âmbito de questões que sejam quer do domínio do religioso, pelas razões aduzidas atrás, quer, noutro nível completamente distinto, derivadas da prática da generalização abusiva, da utilização de argumentos pseudo-científicos e do impressionismo preconceituoso - impressionismo preconceituoso que, no caso da campanha pelo «não» à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, atingiu níveis de demagogia e de boçalidade inacreditáveis.
Agora, a terminar, um exemplo de confusionismo entre Ciência e Tecnologia: replicando nos Prós e Contras, a um médico (lado «sim») que se referia ao conhecimento científico de a partir de quando um ser passava a ser ele próprio e deixava de ser uma parte da mulher - agora mãe já -, uma colega daquele (lado «não») afirmava que aquele conhecimento era falível, pois os avanços tecnológicos conseguiam salvar cada vez mais cedo os prematuros - ou ela não quis entender o que o outro em termos de ciência afirmava ou então procurou deliberadamente, misturando factos distintos, confundir tanto público quanto possível.


(1) Reis, Manuel (2007), “Desconstruindo o discurso académico do Papa”, pg. 77. Porto: Profedições, Lda.


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