
- Nº 1704 (2006/07/27)
Ofensiva contra as liberdades
Exercer os direitos é defendê-los
Em Foco
As liberdades estão a ser ameaçadas. O processo movido a dois dirigentes do PCP por «manifestação ilegal», por ocasião da entrega de 120 mil assinaturas contra o aumento da idade da reforma, foi apenas um capítulo, particularmente grave e visível, das muitas tentativas em curso de limitar os mais elementares direitos e liberdades democráticas conquistadas com o 25 de Abril.
Nesta edição, o Avante! dá a conhecer episódios e protagonistas de casos exemplares desta ofensiva contra a democracia. Casos que, sendo paradigmáticos, são apenas alguns. Publicamos também uma entrevista com Vasco Cardoso, da Comissão Política do PCP, que traça uma análise global da situação.
Avante! – Na sua última reunião, o Comité Central do PCP alertou para as «cada vez mais frequentes acções de limitação de direitos e restrição das liberdades de acção política, de propaganda e de acção sindical». Queres exemplificar?
Vasco Cardoso – Esta denúncia não parte de um acontecimento isolado, mas de um conjunto de elementos que temos vindo a recolher – o próprio Departamento de Propaganda do Partido está a efectuar um levantamento à escala nacional - e que dão uma indicação clara de um sentido crescente nas limitações a liberdades e direitos fundamentais do Estado democrático. É um conjunto muito diverso de situações que entendemos não poderem ser analisadas isoladamente.
Há, por exemplo, toda uma linha que envolve a participação de agentes das forças de segurança, de agentes municipais, de empresas de segurança privadas, como elementos intimidadores relativamente à distribuição de propaganda escrita. São bastante numerosos os casos de intimidação e tentativa de impedimento – efectivado, em alguns casos – de distribuição de propaganda. Por exemplo, à porta das empresas são muitas vezes os funcionários das empresas de segurança que fazem este «serviço».
– E há também as acusações por «manifestação ilegal», accionados contra sindicalistas e militantes do PCP…
- É uma outra situação que se tornou mais visível a partir do governo PSD-CDS-PP, de Durão Barroso, e que é a invocação de um decreto de 1974 que prevê que qualquer manifestação carece de legalidade se realizada antes das 19 horas durante os dias de semana, remetendo as manifestações para depois dessa hora ou para os fins-de-semana. Isto serviu para que tivessem sido realizadas numerosas acções em que dirigentes do movimentos sindical, estudantil e de outras organizações sociais tenham sido identificados pelas forças de segurança acusados de «manifestação ilegal».
– Essa lei é anterior à própria Constituição da República e os processos acabam sempre arquivados ou, nos julgamentos realizados, os arguidos são absolvidos…
- Porque são fundamentalmente atitudes intimidatórias, que procuram criar a ideia de que participar na luta é arranjar problemas, é fazer qualquer coisa que está fora de uma certa «ordem natural das coisas». Por outro lado, procura-se fulanizar a própria luta, responsabilizando não a organização promotora do protesto, mas sim indivíduos concretos, de forma a criar um clima de intimidação individual, afastando e isolando os dirigentes das organizações que representam.
Foi precisamente ao abrigo desse decreto que, na sequência da entrega de mais de 120 mil assinaturas contra o aumento da idade de reforma na residência oficial do primeiro-ministro, dois camaradas foram constituídos arguidos, com termo de identidade e residência. O Comité Central denunciou a situação, o Secretariado enviou uma carta ao primeiro-ministro e o grupo parlamentar confrontou o Governo na Assembleia da República com esta questão.
– Como está a decorrer o processo?
- O processo foi arquivado. Mas ficou dado um sinal. E ficou também claro que em nenhuma circunstância o Partido se calará perante situações como esta e que estamos preparados para as enfrentar, sejam elas quais forem.
Apesar das decisões judiciais, não queremos desvalorizar o facto de terem sido feitas as acusações, que por si só é de uma grande gravidade. O Governo tem que ser confrontado com esta situação de uma forma muito visível. Todas estas situações sabemos como começam, mas não sabemos como e onde acabam.
– Recentemente, tem sido mais visível uma tendência para a limitação também da própria liberdade de expressão através da afixação de propaganda fixa…
- Há uma certa confusão, propositadamente criada entre conceitos como «publicidade» e «propaganda», e tendo ou não por base legislação recentemente aprovada, que induz a interpretações arbitrárias e desajustadas daquilo que é o próprio quadro constitucional, no que se refere ao exercício deste direito.
Isto desembocou numa linha generalizada de limitações à fixação de propaganda exterior, nomeadamente por parte das autarquias de maioria PS e PSD. Invocam questões de contexto e de enquadramento estético e paisagístico… Há actualmente centenas de estruturas mupi do Partido recolhidas em estaleiros de câmaras municipais.
– O regulamento municipal de propaganda, recentemente aprovado no Porto, é um exemplo disso…
- Sim, é um regulamento claramente violador daquilo que são preceitos constitucionais. Representa a tradução da concepção de que, por si só, as câmaras municipais podem decidir quem, como, quando e onde é que se pode afixar propaganda. Este regulamento contou não apenas com o nosso voto contra mas com um conjunto de acções no sentido da defesa do direito à liberdade de expressão.
Os dados indicam que pode haver uma maior protecção em relação aos períodos eleitorais do que relativamente à restante actividade partidária. E percebe-se porquê… Há toda uma concepção de democracia que se esgota nos actos eleitorais e que não tem tradução na participação permanente das populações, das organizações e dos partidos, tal como nós entendemos e praticamos.
– Face a todas estas limitações, que fazer?
- Nem o fascismo conseguiu impedir a distribuição de propaganda, nem a venda do Avante!, nem a divulgação da opinião do Partido, nem a luta dos trabalhadores e das populações e sabemos que também não serão estas medidas que o vão conseguir fazer. Mas não queremos que avancem estas tendências repressivas, até porque as liberdades custaram muito aos trabalhadores e ao povo português.
Entendemos que isto tem que ser combatido pelo Partido e pelas organizações sociais: É preciso denunciar na comunicação social e utilizar os instrumentos jurídicos que estão à nossa disposição, já que a Constituição consagra todas estas liberdades e está do lado da luta.
Mas é preciso sobretudo ter a concepção de que muitos destes direitos se cumprem e se defendem exercendo-se. E isto significa que nos locais em que nos tentam impedir a afixação de propaganda é preciso continuar a afixar propaganda, quando nos dizem que uma manifestação é ilegal é preciso que ela se realize. É este o apelo que o Partido faz aos seus militantes e organizações e às organizações sociais. Caso contrário, isto poderia significar recuos que condicionariam a luta hoje e estamos seguros de que condicionariam a luta no futuro.
Ofensiva contra as liberdades
O capital quer liquidar as forças que lhe resistem
As limitações às liberdades políticas têm causas profundas que residem no empobrecimento da democracia económica e social. Quem o afirma é ainda Vasco Cardoso, que fala de uma ofensiva global contra a democracia, levada a cabo pelas forças do capital e pelos governos ao seu serviço.
– O Partido tem uma visão da democracia que não se limita apenas à sua vertente política. Tendo isto em conta, como analisas o actual estado da nossa democracia?
- Nós não temos uma concepção da democracia limitada ao plano político. E consideramos que o empobrecimento da democracia económica e social condiciona naturalmente a vertente política. Dou um exemplo muito concreto: um trabalhador precário tem condições de estar no mesmo plano para lutar pelos seus direitos do que um trabalhador efectivo? É óbvio que não.
Isto revela que o aumento da precariedade, por exemplo, é um condicionante objectivo da capacidade reivindicativa e de luta dos trabalhadores, bem como da sua própria sindicalização. O mesmo se passa com o desemprego, que contribui para encostar os trabalhadores à parede: «se lutas vai outro para o teu lugar.»
– São formas mais encapotadas de limitar as liberdades…
- Mas nada disto é novo nem surgiu em 2006. São instrumentos persecutórios antigos, mas que hoje atingem uma visibilidade maior porque o capital se sente com força. Até porque tem do seu lado, no plano institucional, um governo, um Presidente e uma maioria na Assembleia da República. Trata-se de uma expressão da luta de classes. O capital quer manter esta política, quer manter as suas margens de lucro, e procura criar as condições para isso.
Ao aplicarem esta política contra os trabalhadores e o povo, sabem que irão surgir lutas e resistências e procuram condicionar, de várias formas, todas as expressões dessa mesma resistência e luta.
– Falaste em várias formas de condicionar a luta. Podes dar mais alguns exemplos?
- Já falámos das questões que se prendem com a liberdade de expressão, mas podemos falar também da Justiça e das alterações relativas, por exemplo, às custas judiciárias. Estas alterações contribuíram para que grande parte dos trabalhadores tenha hoje muito mais dificuldade em recorrer à justiça para reclamar créditos que lhes são devidos pelas entidades patronais ou confrontar a entidade patronal com violações ao seu contracto de trabalho. Temos cada vez mais uma Justiça que protege quem tem dinheiro, uma Justiça de classe. O poder que qualquer empresa tem para contratar um batalhão de advogados para defender uma causa contra os trabalhadores, em termos individuais ou colectivos, é incomparavelmente maior do que o poder de que dispõem os trabalhadores e as suas organizações. E há também o problema das forças de segurança…
– A que problema te referes?
- Por exemplo às tentativas para a militarização das forças de segurança, ou à ideia do «inimigo interno», ou às operações de demonstração de força em larga escala, como recentemente aconteceu no Bairro da Torre. Entraram com centenas de agentes, numa atitude de hostilização para com a população ali residente, para apreender dez caçadeiras. Tenho muitas dúvidas que entrassem assim na Quinta da Marinha…
E depois temos a participação de forças da GNR a impedir o funcionamento dos piquetes de greve, à semelhança daquilo que aconteceu quer antes do 25 de Abril quer em alturas mais agudas da luta social nos anos 80. Isto aconteceu este ano em várias ocasiões. Procura-se incutir, também no seio das forças de segurança, a ideia de que a luta é algo que destabiliza e que tem que ser vigiado, autorizado, legitimado pelo poder político instituído. Assistimos à afirmação do carácter repressivo das forças de segurança.
– No comunicado aprovado na última reunião do Comité Central as alterações às leis eleitorais surgem aliadas a tudo isto…
- Quando o Belmiro de Azevedo vem dizer, numa entrevista, que é necessário rever a Constituição da República, e uma das questões centrais que coloca para essa revisão é a «reforma» do sistema político. Para ele, um governo com um primeiro-ministro e dez ministros e um parlamento com cem deputados servia perfeitamente. Tudo isto corresponde a um projecto de liquidação das forças de resistência ao capitalismo no plano institucional, e no plano da sua visibilidade e afirmação pública e de rua, bem como da sua capacidade de mobilização.
– O PCP afirma frequentemente que as «reformas» no sistema político se destinam principalmente à sua organização e actividade…
- Sim, porque já não é apenas o silenciamento na comunicação social e a deturpação de algumas ideias e conceitos do Partido. O que está em curso é a tentativa de limitar aquilo que hoje ainda depende da organização e da força do Partido: a sua capacidade de propaganda e de agitação junto dos trabalhadores e das populações.
Há aqui aspectos que se ligam com aquilo que combatemos durante 48 anos de ditadura fascista. Não querendo assumir comparações abusivas, a tendência hoje é de apertar a malha relativamente às liberdades e aos direitos, visando sobretudo a organização e acção do Partido. Se olharmos para as leis dos partidos e do seu financiamento, está presente uma concepção de criar um modelo único para os partidos. A natureza e identidade do PCP exige uma actividade e uma presença permanentes e é precisamente isso que, por diversas vias, se tenta limitar.
São aspectos que não estão isolados e contra os quais apenas o PCP tem tido uma postura firme e de combate. E esta é uma característica do PCP, quer antes do 25 de Abril quer agora. Uma característica da qual nunca abdicará.