AIL contesta propostas governamentais

Polémica Lei das Rendas

Miguel Inácio
A nova Lei das Rendas, em discussão até ao dia 28 de Junho, foi aprovada em Março e, desde então, motivou profundas alterações nas regras de todos os arrendamentos urbanos anteriores a 1990. As expectativas de algum equilíbrio entre os direitos e os deveres das partes, inquilinos e proprietários, já bastante desequilibrados a favor dos senhorios, são, e prometem ser, ainda mais desequilibradas a favor dos mesmos. Encarar o direito à propriedade como um valor absoluto e intocável, sobrepondo-se à sua função social e económica, postura evidenciada pelos proprietários e acolhida pelo Governo nessas propostas, é, para a Associação de Inquilinos Lisbonenses (AIL), uma clara distorção dos objectivos que deveriam orientar esta alteração da legislação sobre o arrendamento urbano. Romão Lavadinho, presidente da AIL, desvendou, em conversa com o Avante!, alguns dos pontos mais polémicos da nova Lei das Rendas.
Um dos pontos de discordância dos inquilinos com o Governo prende-se com o facto de os senhorios poderem denunciar os contratos de arrendamento para demolição ou obras de remodelação ou restauro profundos.
Isto é, exemplificou Romão Lavadinho: «Uma casa que não tem casa de banho ou que a cozinha esteja completamente degradada é um restauro profundo. Embora o conceito não esteja ainda bem definido, a nova lei considera que se a pessoa não puder ficar dentro do imóvel enquanto se realizar a obra, é considerado um restauro profundo».
Sabendo-se que o estado de degradação da generalidade dos prédios arrendados deve-se, indubitavelmente, à incúria dos proprietários e da Administração Pública, os primeiros porque não cuidaram do património e a segunda porque não faz aplicar a lei, para a AIL, não é tolerável que sejam os inquilinos a sofrerem as consequências dessa situação através de denúncias dos contratos.
«Vamos contestar e dizer que esta alínea não poderá continuar na lei, até porque a denúncia ou suspensão do contrato fica apenas e exclusivamente ao critério do proprietário», afirmou Romão Lavadinho, explicando que o Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados prevê a possibilidade de o senhorio poder denunciar os contratos de arrendamento, mediante o pagamento de dois anos de renda ao inquilino com quem pretende denunciar o contrato.
Segundo a nova lei, o senhorio tem ainda a alternativa de chegar a acordo com o inquilino e garantir o realojamento do arrendatário por período não inferior a cinco anos, no mesmo concelho e em condições análogas às que tinha. Mas, na ausência de acordo, a lei dá prevalência ao pagamento da referida indemnização para denúncia do contrato.
«Isto é altamente rentável para uma pessoa que perceba minimamente de economia», comentou o presidente da AIL, «porque, com sete ou oito mil euros (valor máxima da indemnização), o proprietário fica com uma casa vazia, recupera-a, põe-na no mercado aos preços actuais que rondam os 800 euros, dependendo do imóvel e do local. Ou então, vende o apartamento, simplesmente porque já está livre.»
«Tendo em conta que neste momento a grande maioria deste património está completamente deteriorado e a necessitar de obras de remodelação profundas, o que vai suceder é que vamos ter na rua, despejadas, milhares de famílias», alertou Romão Lavadinho, que defende «o realojamento dos inquilinos enquanto a obra se realizar, voltando o inquilino a ocupar a sua habitação, pagando uma nova renda, mas em função da qualidade da casa».

Sub­sí­dios são uma fa­lácia

Outro dos problemas mencionados são os subsídios a atribuir pelo Estado aos inquilinos. Segundo a AIL o projecto de diploma enferma de sérias insuficiências e ignora claramente os deprimidos rendimentos de inúmeros agregados familiares.
«Achamos que é socialmente impensável alguém poder ser posto na rua, ou seja, despejado, pelo facto de não poder pagar uma renda de casa», salienta Romão Lavadinho, sublinhando que «compete ao Estado o papel social de protecção das pessoas. Não pode uma pessoa, porque não tem condições, agora, no final da sua vida, quando já está numa situação em que precisa de maiores cuidados, por questões de saúde, nomeadamente, ficar sem sítio para morar».
Entretanto, com os regulamentos agora propostos pelo Governo, o valor anual pago pelos inquilinos será igual a quatro por cento do valor da casa. No entanto, vai existir um período de transição de dez anos para as famílias com rendimentos mensais inferiores a cinco salários mínimos, de cinco anos para os agregados com menos de cinco salários mínimos e de dois anos para as famílias que ganham mais de 15 salários mínimos. No caso das famílias mais pobres não poderão ultrapassar 30 por cento do rendimento bruto.
Irá ainda ser atribuído um subsídio que terá como valor máximo 386 euros por mês. Terão direito a esse apoio inquilinos que tenham menos de 65 anos de idade e recebam até três salários mínimos. Acima dos 65 anos, terá subsídio quem receber menos de cinco ordenados mínimos.
Para a AIL os subsídios prometidos pelo Executivo PS são uma «falácia», até porque estas verbas «vão ser dadas a partir de uma taxa de esforço que vai ser exigida às famílias». «A questão dos subsídios é importante, mas apenas uma pequena minoria os vai receber», lembrou Romão Lavadinho, denunciando que os subsídios «só irão ser entregues no segundo ou no terceiro ano da entrada em vigor da lei. Por seu lado, o Governo vai receber, logo no primeiro ano, o valor do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) dos proprietários, que vai ser muito superior ao valor dos subsídios».

Go­verno com os pro­pri­e­tá­rios

Ainda de acordo com as propostas do Governo, o senhorio poderá decidir qual o nível de conservação da sua casa, bastando no caso informar as Comissões Arbitrais Municipais (CAM) de que os prédios se encontram em «excelente» ou em «bom estado». Nestes casos, as rendas serão actualizadas com base num coeficiente de conservação de 0,9, correspondendo ao nível de conservação de «médio». Só nas situações de oposição dos inquilinos é que as CAM procedem à avaliação do estado do imóvel.
A Associação de Inquilinos Lisbonenses manifestou-se contra esta proposta até porque o estado de conservação deveria ser determinante para a actualização da renda, não sendo aceitável alterar este princípio.
«Se o proprietário entender que a casa está em bom estado de conservação, sem qualquer avaliação técnica, a qualquer momento, poderá aumentar a renda, baixando apenas os índices dos coeficientes de conservação», afiançou Romão Lavadinho, denunciando que «se o inquilino quiser fazer o ónus da prova terá que requerer uma avaliação, que lhes poderá custar entre os 200 e os 600 euros».
Face a isto, continua o presidente da AIL, «o proprietário não irá efectuar quaisquer tipo de obras e exigirá um aumento em função dos coeficientes de conservação».

Mer­cado de ar­ren­da­mento

Lamentou ainda a não dinamização do mercado de arrendamento, uma das razões, segundo o Governo, para implementar a nova Lei do Arrendamento. «Se não há obras, não há casas para arrendar. Se as casas continuarem fechadas, não se vai desenvolver nenhum mercado de arrendamento», recorda Romão Lavadinho, antevendo «que as famílias, especialmente os mais jovens, terão que se virar para a compra de habitação própria, com os inconvenientes que isso tem, nomeadamente com a mobilidade que ficará limitada».
«Este é outro dos grandes problemas que esta lei vai trazer e que não tenciona resolver, que é a questão do desenvolvimento e dinamização do mercado e a recuperação do património», afirmou, acrescentando que para os inquilinos o fundamental «não é só o valor da renda», «o problema é a reabilitação, até porque existem milhares de casas que não têm condições de habitabilidade e que vão continuar nessas condições».
Para ilustrar esta situação, e porque as pessoas não tem possibilidades de pagar rendas elevadas, responsabilizando o Estado e os municípios por esta situação, Romão Lavadinho deu o exemplo dos prédios do Instituto Nacional de Habitação (INH), actualmente sobre a alçada da Fundação D. Pedro IV, em Lisboa, «onde temos conhecimento de que houve uma idosa que morreu quando lhe disseram que ia passar a pagar 200 euros de renda quando pagava apenas cinco euros».
«Enquanto a lei permite e obriga de oito em oito anos a serem feitas obras de conservação nas coberturas e nas fachadas, isto nunca foi feito. Como resultado desta situação, os prédios foram-se degradando, e as famílias que lá moram vivem em situações de falta de humanidade», acusa.

Pré­dios de­vo­lutos

Porque a existência de milhares de fogos e prédios devolutos obriga à tomada de medidas que levem à sua utilização a curto prazo, Romão Lavadinho valorizou, por seu lado, a proposta apresentada pela AIL sobre o «conceito fiscal de prédio devoluto».
«Por proposta nossa, que os proprietários consideram demagógica, mas que o Governo acabou por acatar, os prédios degradados e fora do mercado de arrendamento serão penalizados em cem por cento do valor do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), ou seja, hipoteticamente, se pagavam “10” passam agora a pagar “20”, enquanto tiverem devolutos».
Entretanto, embora se considere positivo o agravamento do IMI, a AIL pressente uma evidente timidez na medida, «pois dever-se-ia ter ido mais longe em ordem a pressionar, de facto, a utilização da propriedade urbana com as consequentes vantagens sociais, económicas e fiscais».
A associação de inquilinos lamenta ainda que as medida preconizadas no projecto de diploma regulamentar são restritas e insuficientes, não tomando em conta outras que indiciam a situação de devoluto.

Es­pe­cu­lação imo­bi­liária

Comentando uma notícia vinculada, dias antes, por um jornal diário nacional, de que a nova Lei do Arrendamento prevê a perda de casa por parte do proprietário, caso não faça obras, Romão Lavadinho referiu que tal medida irá apenas beneficiar a especulação imobiliária. «Esse artigo da lei que permite que os inquilinos possam adquirir o imóvel no caso do senhorio não fazer obras é uma questão secundária. Este ponto da lei não beneficia os inquilinos nem os pequenos proprietários, mas sim um qualquer especulador imobiliário», afirmou.
«Não estamos a falar de grandes proprietários nem de grandes empresários. Não estamos a falar de bancos nem de seguradoras, porque na primeira altura em que o inquilino lhes dissesse para fazer as obras, faziam-nas com as vantagens que isso lhes iria trazer (aumento da renda)», acrescentou Romão Lavadinho, acentuando que isso, a acontecer, apenas será «a um proprietário que não tem apoios jurídicos ou técnicos, e então deixa andar as coisas. Nessa altura o inquilino até pode adquirir o imóvel, mas será uma percentagem tão insignificante que não terá valor para a lei».
O que pode ter valor e permite a especulação, continua, «é um qualquer “testa de ferro”, meter-se no meio dos dois, inquilino e proprietário, e em nome do inquilino comprar a casa ao proprietário por um valor
baixo, que é o valor patrimonial. Depois arranja a casa e aluga-a a um preço exorbitante ao inquilino».

Si­tu­ação ca­tas­tró­fica

Mas quem vai ganhar mais com este negócio, segundo a AIL, é o próprio Estado. «O Estado vai receber mais impostos, em termos de IMI, porque a valorização do património vai ser superior ao que era. Vai ainda aumentar o valor do IRS, porque os proprietários têm de considerar o rendimento das rendas, logo o seu valor vai também aumentar em termos fiscais», revela Romão Lavadinho, que se interroga: «Agora resta saber se estes ganhos compensam, ou não, os sacrifícios e os despejos que as famílias vão sofrer, não só porque vão continuar a viver em casas degradadas, como, por outro lado, continuarão a viver em casas cujas as rendas são bastante altas, demasiado elevadas para a sua bolsa, o que vai prejudicar a qualidade de vida das pessoas. Socialmente isto vai ser uma desgraça.»

«Re­gime Ju­rí­dico das Obras em Pré­dios Ar­ren­dados»

Se é óbvia a ne­ces­si­dade de uma ampla in­ter­venção na re­a­bi­li­tação ur­bana, também é óbvia a ne­ces­si­dade de se pro­teger os ar­ren­da­tá­rios ga­ran­tindo-lhes os con­tratos de ar­ren­da­mento. Se­gundo a AIL, que apre­sentou re­cen­te­mente as suas pro­postas ao Go­verno, os termos do pro­jecto contêm uma pre­missa ina­cei­tável, dei­xando an­tever um cho­rudo prémio para quem não cuidou do pa­tri­mónio, ao poder de­nun­ciar con­tratos de ar­ren­da­mento. Neste sen­tido os in­qui­linos de­fendem:

• A definição de obra de remodelação e restauro profundo deve ser concisa e precisa em ordem a evitarem-se possibilidades interpretativas ao sabor das conveniências.
• Não pode ser aplicável a prédios que não tenham sido alvo de obras há mais de oito anos, para não beneficiar o proprietário relapso.
• Deve-se prever, como regra, a reocupação após as obras e o realojamento durante as mesmas.
• Deve-se prever, como regra, o realojamento em caso de demolição nas mesmas condições contratuais anteriormente vigentes.
• Em alternativa, deve-se prever uma indemnização de valor nunca inferior a dez anos de renda actualizada, de modo a evitar o oportunismo e a permitir ao inquilino o despejo face à situação que lhe foi criada.
• Nos casos de demolição por força da degradação do prédio e que tecnicamente não seja reabilitável deve-se prever uma indemnização mínima elevada ao dobro da anteriormente considerada.
• Deve-se restringir a cedência de poderes públicos a entidades não públicas pois tal medida deixa antever uma intervenção desregrada e incontrolada no mercado habitacional com os inevitáveis inconvenientes, pressões, abusos e litigiosidade e a consequente especulação.