Marcelo e o «populismo»

Correia da Fonseca
Há certos dias em que Marcelo Rebelo de Sousa parece especialmente animado no decurso das suas conversas semanais na TV, mas não me lembro de tanta fogosidade quanto a que julguei detectar-lhe no passado domingo. Dir-se-ia que o congresso do PSD, com a vitória de Marques Mendes por falta de comparência de qualquer concorrente, despertou no professor o ardoroso sentido de oposição, porventura para mostrar ao confirmado líder como é que se faz. Foram vários os momentos em que fez por arrasar Sócrates, mas permitir-se-á que destaque o sarcasmo com que comentou a informação de que o primeiro-ministro trabalha ao domingo, aliás em clara infracção à lei divina. Mas foi ao comentar o mais recente caso Freitas do Amaral, isto é, a manchete do «Expresso» que lhe atribuiu cansaço da função ministerial, que Marcelo ultrapassou os limites do bom-senso que costuma respeitar cuidadosamente. Na verdade, já não lhe teria ficado muito bem que, para reprovar o desabafo do ministro, se apressasse a invocar o exemplo de Condollezza Rice porque, enfim, fora de Portugal há mais mundo além dos Estados Unidos. Mas que, logo a seguir, e porventura para emendar um pouco a aparente fixação atlântica, tenha afirmado que nunca ouvira nenhum ministro dos Negócios Estrangeiros de qualquer país queixar-se de cansaço, foi um desatino desnecessário. Será que o professor anda por esse mundo, ou mesmo apenas por essa Europa, a ouvir ministros dos Negócios Estrangeiros? Será nos cortes de ténis para onde o arrasta a sua afic­cion tenista? Será nas salas de concerto de Salzburgo a ouvir Mozart ou em Beyreuth a ouvir Wagner, como lhe é permitido pela sua invejável condição de melómano com possibilidades de se permitir esses mimos? Ou não será em lado nenhum e, como é mais provável, a frase foi apenas o resultado de uma vontade incontrolada de embirrar com Freitas, em consonância com a direita que não lhe perdoa a ligeira descolagem da ortodoxia inicial e sobretudo as faltas de respeito que o actual MNE ousou ter para com os Estados Unidos?

Um truque vo­ca­bular

Entretanto, aconteceu que Maria Flor Pedroso decidiu dar uma ajuda à orientação da rubrica e tomou a iniciativa de informar que Hugo Chávez estará na disposição de fazer referendar uma alteração constitucional que lhe permita manter a presidência até 2031. Mais não disse Maria Flor, nem qual a fonte da informação nem o quadro que terá provocado a «ameaça» de Chávez, mas pela intervenção da jornalista pareceu-me vislumbrar com suficiente clareza a vantagem que houve na substituição de Ana Sousa Dias. Porém, o melhor daquele momento residiu no que ouvimos a Marcelo. Explicou ele, didáctico como sempre, que na América Latina já não se usa o «socialmarxismo», como nos velhos tempos em que Fidel tomou o poder, mas sim o «socialpopulismo», de que precisamente Hugo Chávez será flagrante exemplo. Por mim, faço ao professor a elementar justiça de acreditar que o uso do reles truque vocabular de colar a palavra «populismo» aos movimentos libertadores que percorrem a espoliadíssima América do Sul não é fruto do seu engenho, que não considero grosseiro. Mais me inclino a crer que o terá adoptado por contágio mediante más leituras e péssimas companhias, tanto mais que em matéria de análises à Esquerda-que-o-é-a-sério nunca Marcelo Rebelo de Sousa fez prova, mesmo ténue, da argúcia de que goza fama, e não sem fundamento, quando se trata de outras áreas de observação. Quanto à utilização da palavra «populismo» para tentar desprestigiar o que vem acontecendo, há-de tratar-se de uma ideia saída de algum crânio recrutado por central norte-americana de manipulação e calúnia. É de uma luminosa evidência que as acções políticas de Chávez, como as que são esperáveis de Evo Morales e até as que foram prometidas por Lula da Silva, radicam no reconhecimento da luta de classes, na identificação do imperialismo como fase avançada do capitalismo, na necessidade e na justiça na nacionalização dos grandes meios de produção sobretudo em certas concretas circunstâncias político-sociais, no direito dos povos a beneficiarem das matérias-primas existentes nas suas terras. Pretender que nada disto tem a ver com o marxismo, só por extremo descaramento ou por enorme distracção. Acreditemos que, como tradicionalmente acontece com todos os sábios, também o professor Marcelo tem zonas de distracção. E esqueçamos.


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