Guerra da sucessão em Downing Street
Tudo indica que a passagem do poder inerente ao cargo de primeiro-ministro da Grã-Bretanha já está a realizar-se. Gradualmente, é certo, mas a passos firmes. A já difícil posição de Tony Blair contra cuja política o povo britânico tem, categoricamente, protestado em múltiplas ocasiões e, particularmente, em poderosas manifestações contra a guerra no Iraque, tornou-se periclitante desde que a própria bancada parlamentar trabalhista começou a rejeitar a legislação proposta pelo governo
Com efeito, criou-se nos ‘Comuns’ uma espécie de semi-grupo formado por trabalhistas da velha escola e por dissidentes do ‘New Labour’que vota contra Blair quase por sistema. Este agrupamento de deputados está na origem de recentes humilhações que tornaram o primeiro-ministro numa espécie de governante fantasma e o fizeram ver, claramente, que a situação se tornara insustentável.
O mês de Fevereiro tem sido particularmente dramático para o governo britânico. Acostumados a contar com vastas maiorias parlamentares, os ministros convenceram-se de que lhes é possível contar com votações em bloco, quase sem discussão das matérias em causa, sempre que o Parlamento é chamado a sancionar legislação proposta. Já em Dezembro passado o governo tinha sustentado uma clara derrota nos Comuns quando a Câmara recusou aprovar a legislação que tornaria possível à polícia deter suspeitos de actos terroristas por 90 dias sem acusação formada. Agora, em duas recentes votações que, se vitoriosas, permitiriam a entrada em vigor de leis punitivas de ódio, fraseologia ou comportamento anti-religioso, mais de 70 deputados trabalhistas votaram contra o governo ou, simplesmente, desertaram a Câmara para não votarem, provocando a Tony Blair outras duas derrotas parlamentares. Por fim, doze deputados trabalhistas tinham-se ausentado para a Escócia onde o partido defendia numa eleição parcial o lugar por Dunfermline & Fife que, eventualmente, acabaria por perder para os Liberais-Democratas.
Brown já vai ao volante
Nesta conjuntura, temendo novas desastrosas e humilhantes derrotas, Tony Blair começou a alterar os projectos de lei sobre reformas no sector da Educação que já estavam preparados para a respectiva votação na Câmara dos Comuns em Março. Mas, de repente, toda a Grã-Bretanha assistiu, surpreendida, ao aparecimento do Chanceler do Tesouro (Ministro da Economia e das Finanças) numa situação que só podia reforçar o seu estatuto de ‘prime-minister in waiting’, o que quer dizer primeiro-ministro já com um pé no No.10 de Downing Street mas à espera, ainda, de ver confirmada a respectiva transferência de poderes.
O principal jornal britânico não tablóide, ‘The Daily Telegraph’, apressou-se a anunciar a toda a largura da sua primeira página (13.02.06): «Brown já está ao volante» enquanto publicava desenvolvidas reportagens sobre matérias como a Defesa, a instituição de um ‘Dia Anual do Veterano de Guerra’, a segurança nacional, que o ainda ‘Chancellor of the Exchequer’ desenvolveu numa entrevista à BBC. Logo o actual Secretário de Estado (Ministro) da Justiça e do Interior, Charles Clarke, esclareceu: «O cargo de primeiro-ministro deste país está já a ser exercido em forma dual». Brown, entretanto, apelava a toda a bancada trabalhista no sentido de que não castigasse Blair ainda mais nas votações parlamentares que se aproximavam, a que instituiria o ‘Bilhete de Identidade’ neste país como forma oficial de identificação, mas não única ou obrigatória, e a que transformaria num crime a glorificação do terrorismo.
Brown apelou, também, no sentido de que os ansiosamente aguardados debates parlamentares sobre a proibição do uso do tabaco em lugares públicos e sobre as reformas na Educação que podem colocar em perigo a posição da Secretária de Estado, Ruth Kelly, se realizem numa atmosfera de lealdade ao governo e de confiança nos programas do Partido Trabalhista. Tanto quanto julgamos saber, os deputados aquietaram-se tendo concluído, possivelmente, que os dias de Blair estão contados. Assim, no passado dia 13, o governo venceu a votação respeitante aos Bilhetes de Identidade por 310 votos contra 279. Mesmo assim, a maioria favorável à criação a partir de 2008 de um documento que nunca existiu na Grã-Bretanha e que inspira sérias dúvidas entre a população, foi de, apenas, 31 votos quando a maioria parlamentar absoluta é de 64. Nem todos os deputados trabalhistas, portanto, trocaram a sua convicção de adversários do B.I. pela lealdade ao governo proposta por Gordon Brown.
Quem é e de onde vem Gordon Brown
Advogado de Edimburgo, Gordon Brown não é, evidentemente, um revolucionário. Porque se o fosse não estaria no lugar que ocupa nem chegaria a ocupar aquele que Tony Blair já considerou abandonar para escapar à humilhação de ter de sair do No.10 de Downing Street, à força. Os advogados de Edimburgo, na sua esmagadora maioria, provêm de famílias abastadas, são conservadores mesmo se membros do Partido Trabalhista, amam a vida dos tribunais, jantam em recuperados castelos medievais de grande luxo, conhecem os melhores vinhos franceses, casam tarde mas fazem famílias numerosas, jogam ‘rugby’, de futebol não gostam. São patriotas, defendem a Escócia mas só se os interesses da nação não colidem com os da mãe Grã-Bretanha. Alguns, são católicos. A maioria é protestante e muitos dispersam-se por ramos desconhecidos do presbiterianismo. Respeitam a História da Escócia mas fogem a discutir dela os pormenores porque são complexos e nem sempre os compreendem. Não são republicanos. Vivem confortavelmente no reino de Isabel II dos Windsor e de Inglaterra. Gostam de ‘whisky’, mas só de malte. Admiram ‘sir’ Walter Scott e Robert Louis Stevenson, ambos de Edimburgo, também, muito mais do que Robert Burns, o poeta do povo escocês.
Gordon Brown não possui a moralidade do socialismo. Não se pense que governará na base do trabalhismo em cujos estatutos a célebre ‘Cláusula 4’ prometia aos britânicos a nacionalização de todos os principais meios de produção industrial e agrícola, de extracção mineira, dos transportes e de todos os serviços do ramo das finanças como os Bancos, as companhias de seguros e assim por diante. Esse Partido Trabalhista já não existe, o que não quer dizer que não ressuscite. Gordon Brown deseja uma Grã-Bretanha forte e estável. Declara-se a favor de uma guerra cultural contra o Islamismo. Certamente, não fará sair o contingente britânico que ocupa a província e a cidade de Bassorá, no Iraque. Respeita, ao contrário de Blair, os valores da Inglaterra vitoriana. Ignora Marx, mas sabe tudo sobre Adam Smith, o autor de ‘A Riqueza das Nações’ e mestre da economia política do capitalismo. Tem quatro ideais supremos: o de ser britânico, o do dever cumprido e a cumprir, o da família, e o das Forças Armadas.
Voz da história
Se Gordon Brown entrar em breve no No.10 de Downing Street, como se espera, poderá não permanecer nesse histórico lugar por muito tempo porque ninguém pode asseverar se ganhará as próximas eleições gerais. A sua ascensão ao cargo de primeiro-ministro só pode verificar-se por demissão de Blair que é o líder do partido vencedor das últimas eleições gerais. Brown, na qualidade de líder eleito em substituição de Blair, será chamado a Buckingham Palace para receber a incumbência de constituir governo. As coisas passar-se-ão assim e a Grã-Bretanha terá um novo primeiro-ministro.
No passado, já se verificaram situações similares. Anthony Éden esperou alguns anos até que o seu grande momento chegasse. Mas entrando no No.10 para substituir Winston Churchill, em Maio de 1955, só lá esteve 19 meses. Alex Douglas-Hume, que sucedeu a Harold Macmillan, em 1963, conseguiu sobreviver durante um ano mas, depois, nas eleições gerais de 1964, seria derrotado, ainda que por pequena margem pelo novo líder trabalhista, Harold Wilson. James Callaghan fez muito melhor. Ao suceder a Harold Wilson ficou no No.10 por um período de três anos até ser batido por Margaret Thatcher nas eleições de 1979. Nesta matéria, quem fez melhor foi John Major que, após substituir a chamada ‘dama de ferro’ em 1990, permaneceu no lugar de primeiro-ministro durante sete anos.
Como todos sabemos, Major seria apeado do poder quando nas eleições gerais de 1997 Tony Blair conseguiu uma esmagadora vitória sobre o Partido Conservador. Este, naquela época, era um partido já cansado de governar, que se tinha perdido numa trajectória alucinante, que se achava minado por efeitos de corrupção, que fizera a guerra à Argentina por uma pequena colónia perdida no Atlântico Sul, que fizera a guerra ao próprio povo trabalhador britânico liquidando milhares de empregos na indústria mineira do carvão, destruindo o glorioso Sindicato dos Mineiros a que chamava o inimigo interno, destruindo a própria indústria em todo o País de Gales, em todo o Yorkshire, em toda a Escócia. Nessa altura, o povo britânico entendeu que tinha chegado a hora de experimentar as aliciantes propostas que Tony Blair lhe apresentava. Mas é triste olhar para trás, agora, e ver tudo o que o criador do ‘New Labour’ fez. Quem acreditaria, em 1997, que o primeiro-ministro, Blair, empurraria o país para uma guerra suja, injusta, imoral, criminosa como a do Iraque? Ninguém.
O mês de Fevereiro tem sido particularmente dramático para o governo britânico. Acostumados a contar com vastas maiorias parlamentares, os ministros convenceram-se de que lhes é possível contar com votações em bloco, quase sem discussão das matérias em causa, sempre que o Parlamento é chamado a sancionar legislação proposta. Já em Dezembro passado o governo tinha sustentado uma clara derrota nos Comuns quando a Câmara recusou aprovar a legislação que tornaria possível à polícia deter suspeitos de actos terroristas por 90 dias sem acusação formada. Agora, em duas recentes votações que, se vitoriosas, permitiriam a entrada em vigor de leis punitivas de ódio, fraseologia ou comportamento anti-religioso, mais de 70 deputados trabalhistas votaram contra o governo ou, simplesmente, desertaram a Câmara para não votarem, provocando a Tony Blair outras duas derrotas parlamentares. Por fim, doze deputados trabalhistas tinham-se ausentado para a Escócia onde o partido defendia numa eleição parcial o lugar por Dunfermline & Fife que, eventualmente, acabaria por perder para os Liberais-Democratas.
Brown já vai ao volante
Nesta conjuntura, temendo novas desastrosas e humilhantes derrotas, Tony Blair começou a alterar os projectos de lei sobre reformas no sector da Educação que já estavam preparados para a respectiva votação na Câmara dos Comuns em Março. Mas, de repente, toda a Grã-Bretanha assistiu, surpreendida, ao aparecimento do Chanceler do Tesouro (Ministro da Economia e das Finanças) numa situação que só podia reforçar o seu estatuto de ‘prime-minister in waiting’, o que quer dizer primeiro-ministro já com um pé no No.10 de Downing Street mas à espera, ainda, de ver confirmada a respectiva transferência de poderes.
O principal jornal britânico não tablóide, ‘The Daily Telegraph’, apressou-se a anunciar a toda a largura da sua primeira página (13.02.06): «Brown já está ao volante» enquanto publicava desenvolvidas reportagens sobre matérias como a Defesa, a instituição de um ‘Dia Anual do Veterano de Guerra’, a segurança nacional, que o ainda ‘Chancellor of the Exchequer’ desenvolveu numa entrevista à BBC. Logo o actual Secretário de Estado (Ministro) da Justiça e do Interior, Charles Clarke, esclareceu: «O cargo de primeiro-ministro deste país está já a ser exercido em forma dual». Brown, entretanto, apelava a toda a bancada trabalhista no sentido de que não castigasse Blair ainda mais nas votações parlamentares que se aproximavam, a que instituiria o ‘Bilhete de Identidade’ neste país como forma oficial de identificação, mas não única ou obrigatória, e a que transformaria num crime a glorificação do terrorismo.
Brown apelou, também, no sentido de que os ansiosamente aguardados debates parlamentares sobre a proibição do uso do tabaco em lugares públicos e sobre as reformas na Educação que podem colocar em perigo a posição da Secretária de Estado, Ruth Kelly, se realizem numa atmosfera de lealdade ao governo e de confiança nos programas do Partido Trabalhista. Tanto quanto julgamos saber, os deputados aquietaram-se tendo concluído, possivelmente, que os dias de Blair estão contados. Assim, no passado dia 13, o governo venceu a votação respeitante aos Bilhetes de Identidade por 310 votos contra 279. Mesmo assim, a maioria favorável à criação a partir de 2008 de um documento que nunca existiu na Grã-Bretanha e que inspira sérias dúvidas entre a população, foi de, apenas, 31 votos quando a maioria parlamentar absoluta é de 64. Nem todos os deputados trabalhistas, portanto, trocaram a sua convicção de adversários do B.I. pela lealdade ao governo proposta por Gordon Brown.
Quem é e de onde vem Gordon Brown
Advogado de Edimburgo, Gordon Brown não é, evidentemente, um revolucionário. Porque se o fosse não estaria no lugar que ocupa nem chegaria a ocupar aquele que Tony Blair já considerou abandonar para escapar à humilhação de ter de sair do No.10 de Downing Street, à força. Os advogados de Edimburgo, na sua esmagadora maioria, provêm de famílias abastadas, são conservadores mesmo se membros do Partido Trabalhista, amam a vida dos tribunais, jantam em recuperados castelos medievais de grande luxo, conhecem os melhores vinhos franceses, casam tarde mas fazem famílias numerosas, jogam ‘rugby’, de futebol não gostam. São patriotas, defendem a Escócia mas só se os interesses da nação não colidem com os da mãe Grã-Bretanha. Alguns, são católicos. A maioria é protestante e muitos dispersam-se por ramos desconhecidos do presbiterianismo. Respeitam a História da Escócia mas fogem a discutir dela os pormenores porque são complexos e nem sempre os compreendem. Não são republicanos. Vivem confortavelmente no reino de Isabel II dos Windsor e de Inglaterra. Gostam de ‘whisky’, mas só de malte. Admiram ‘sir’ Walter Scott e Robert Louis Stevenson, ambos de Edimburgo, também, muito mais do que Robert Burns, o poeta do povo escocês.
Gordon Brown não possui a moralidade do socialismo. Não se pense que governará na base do trabalhismo em cujos estatutos a célebre ‘Cláusula 4’ prometia aos britânicos a nacionalização de todos os principais meios de produção industrial e agrícola, de extracção mineira, dos transportes e de todos os serviços do ramo das finanças como os Bancos, as companhias de seguros e assim por diante. Esse Partido Trabalhista já não existe, o que não quer dizer que não ressuscite. Gordon Brown deseja uma Grã-Bretanha forte e estável. Declara-se a favor de uma guerra cultural contra o Islamismo. Certamente, não fará sair o contingente britânico que ocupa a província e a cidade de Bassorá, no Iraque. Respeita, ao contrário de Blair, os valores da Inglaterra vitoriana. Ignora Marx, mas sabe tudo sobre Adam Smith, o autor de ‘A Riqueza das Nações’ e mestre da economia política do capitalismo. Tem quatro ideais supremos: o de ser britânico, o do dever cumprido e a cumprir, o da família, e o das Forças Armadas.
Voz da história
Se Gordon Brown entrar em breve no No.10 de Downing Street, como se espera, poderá não permanecer nesse histórico lugar por muito tempo porque ninguém pode asseverar se ganhará as próximas eleições gerais. A sua ascensão ao cargo de primeiro-ministro só pode verificar-se por demissão de Blair que é o líder do partido vencedor das últimas eleições gerais. Brown, na qualidade de líder eleito em substituição de Blair, será chamado a Buckingham Palace para receber a incumbência de constituir governo. As coisas passar-se-ão assim e a Grã-Bretanha terá um novo primeiro-ministro.
No passado, já se verificaram situações similares. Anthony Éden esperou alguns anos até que o seu grande momento chegasse. Mas entrando no No.10 para substituir Winston Churchill, em Maio de 1955, só lá esteve 19 meses. Alex Douglas-Hume, que sucedeu a Harold Macmillan, em 1963, conseguiu sobreviver durante um ano mas, depois, nas eleições gerais de 1964, seria derrotado, ainda que por pequena margem pelo novo líder trabalhista, Harold Wilson. James Callaghan fez muito melhor. Ao suceder a Harold Wilson ficou no No.10 por um período de três anos até ser batido por Margaret Thatcher nas eleições de 1979. Nesta matéria, quem fez melhor foi John Major que, após substituir a chamada ‘dama de ferro’ em 1990, permaneceu no lugar de primeiro-ministro durante sete anos.
Como todos sabemos, Major seria apeado do poder quando nas eleições gerais de 1997 Tony Blair conseguiu uma esmagadora vitória sobre o Partido Conservador. Este, naquela época, era um partido já cansado de governar, que se tinha perdido numa trajectória alucinante, que se achava minado por efeitos de corrupção, que fizera a guerra à Argentina por uma pequena colónia perdida no Atlântico Sul, que fizera a guerra ao próprio povo trabalhador britânico liquidando milhares de empregos na indústria mineira do carvão, destruindo o glorioso Sindicato dos Mineiros a que chamava o inimigo interno, destruindo a própria indústria em todo o País de Gales, em todo o Yorkshire, em toda a Escócia. Nessa altura, o povo britânico entendeu que tinha chegado a hora de experimentar as aliciantes propostas que Tony Blair lhe apresentava. Mas é triste olhar para trás, agora, e ver tudo o que o criador do ‘New Labour’ fez. Quem acreditaria, em 1997, que o primeiro-ministro, Blair, empurraria o país para uma guerra suja, injusta, imoral, criminosa como a do Iraque? Ninguém.