No 88.º aniversário
da Revolução Socialista de 1917

A actualidade de Outubro

Luís Carapinha
A revolução bolchevique de 1917 foi um acontecimento que iluminou o século XX. O clarão por si produzido não apenas se mantém, como inclusive ganha outra magnitude nos dias de hoje, ensombrados pela ofensiva desmedida da globalização imperialista. As ameaças sem precedentes com que se confronta a humanidade, decorrentes da tentativa de imposição do capitalismo como sistema universal e final, só sublinham a necessidade incontornável de efectivas transformações revolucionárias. Por isso, o exemplo e ideais inscritos na Revolução de Outubro, como primeira experiência histórica de construção de uma sociedade livre dos antagonismos e exploração de classe, com todos os seus extraordinários avanços e realizações e o riquíssimo património teórico-prático que encerra, e não obstante todas as circunstâncias que conduziram mais tarde à criação e ao esgotamento de um modelo, conservam uma acrescida actualidade no horizonte contemporâneo da luta de transformação social e por um futuro socialista.
A Revolução de Outubro representa um marco maior na milenar caminhada humana, uma ruptura profunda que as próprias condições históricas amadureceram. Contrariamente à visão maquiavélica e emoldurada da propaganda burguesa, tratou-se de um acontecimento saído das entranhas da história da Rússia e preparado pelo seu curso, sem deixar de ser a «resposta» a um contexto crítico concreto do seu desenvolvimento – precisamente quando as contradições agudas do desenvolvimento capitalista e o fardo suportado pelas classes exploradas se agravam insuportavelmente, com a entrada do país na guerra imperialista. A Revolução russa de Outubro representou o salto qualitativo, a porta de saída que permitiu, pela via do progresso social, a superação do feixe insanável de contradições que empurrava a Rússia para o caos. E fê-lo, resgatando a participação impetuosa na Historia das massas trabalhadoras que tomaram o destino nas suas mãos, num país de atrasos colossais, predominantemente rural, onde as relações feudais persistiam largamente e a imensa maioria da população estava entregue à pobreza e ao analfabetismo, mas em que, simultaneamente, o capitalismo atingira rapidamente a sua fase imperialista, gerando uma classe operária altamente concentrada (e explorada) nos grandes centros urbanos. Classe operária que, como é sabido, se revelou uma força decisiva das transformações revolucionárias ocorridas, e da sua defesa e consolidação.
Lénine e os comunistas russos interpretaram correctamente, partindo dos instrumentos de análise de Marx e aplicando-os criativamente, a dialéctica do processo histórico russo, ao compreender que, no início do século passado, a Rússia se tornara o ponto nodal das contradições capitalistas no seu estádio imperialista, convertendo-se no elo mais fraco da cadeia imperialista mundial. Esta realidade repercutir-se-ia determinantemente na sua evolução interna e levaria Lénine à extracção da dimensão universal expressa no «caso» russo, e à conclusão de que «o imperialismo é a véspera da revolução socialista», isto é, «da revolução social do proletariado».
De facto, a Primeira Guerra Mundial agravara incomensuravelmente a opressão capitalista, feudal e nacional-chauvinista na Rússia, lançando-a definitivamente no turbilhão da desagregação, ao mesmo tempo que precipitava o desenvolvimento da situação revolucionária. Por outro lado, a própria guerra imperialista acelerara a transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado, acelerando assim também a formação das premissas materiais do socialismo. Nas condições da Rússia em guerra, isso significava que, mais do que nunca, a luta do proletariado contra a burguesia confluía com as aspirações e luta dos camponeses. Coube ao fundador do Estado soviético, entre muitos outros méritos, o de identificar com exactidão, nas condições concretas vividas, as forças motrizes da revolução – a aliança da classe operária e do campesinato, juntando em seu torno outras classes e camadas sociais dispostas à luta –, e ligá-las de modo indissociável à acção mobilizadora e organizadora do partido de classe – de que Lénine fora o principal impulsionador –, ganhando o apoio e confiança das massas, com um programa e uma praxis de transformação radical da sociedade, cujo papel de vanguarda a Revolução Socialista russa confirmou plenamente.

Um projecto colectivo

A dimensão humanista da Revolução de Outubro está consubstanciada na sua génese de projecto colectivo emancipador, no seu percurso e conquistas alcançadas – nos planos político, social, económico, cultural e científico – que confirmam a profunda vinculação popular e democrática e o intrínseco carácter libertador e de apego à paz. Desde a divisa de «Todo o poder aos Sovietes!» – os sovietes, essa forma, primeiro, de articulação e, mais tarde, de poder exercido pelos colectivos de trabalhadores e o povo, cuja «irrupção» remonta ainda ao período da revolução de 1905-07 – e dos primeiros decretos da Paz e da Terra, até Brest-Litovsk e à corajosa estratégia revolucionária de paz de Lénine e do partido bolchevique, precisamente quando as burguesias nacionais, com o concurso das forças reformistas, é útil lembrar, insistiam na guerra imperialista; da fundação do Estado multinacional que se lançou à construção de uma sociedade nova, socialista, a URSS, dando conteúdo e suporte à onda revolucionária avassaladora que percorreu o antigo império czarista e assegurando aos seus povos o direito à autodeterminação, ao papel crucial da União Soviética na derrota do nazi-fascismo; do ascenso dos movimentos revolucionários e de libertação nacional e da vitória de novas revoluções socialistas e anticapitalistas, ao nascimento de uma nova ordem internacional, que a criação da ONU representou, e ao desmoronamento dos impérios coloniais; em todos estes acontecimentos e processos, abalizando a verdadeira dimensão de modernidade da Revolução de Outubro e da primeira experiência de construção socialista, estão presentes o apelo e impacto do assalto ao Palácio de Inverno, de 7 de Novembro de 1917.
A actualidade dos avanços sociais e civilizacionais assegurados a partir da Revolução de Outubro, sob o impulso da construção socialista, salta particularmente à vista na época que atravessamos, enformada pelo desaparecimento da URSS, e a tentativa obstinada do grande capital no sentido do seu retrocesso e desmontagem. A URSS foi, nomeadamente, pioneira na regulamentação dos direitos do trabalho, na instituição das 8 horas, das férias pagas, da igualdade entre sexos, na assistência médica e educação gratuitas, no acesso generalizado à cultura. Direitos e conquistas que sob influência determinante da experiência soviética, o capitalismo se viu forçado a incorporar e que não podem ser desligados do modelo do welfare state, cujo inclemente esboroamento hoje se regista às mãos do mesmo sistema. Avanços civilizacionais, acrescente-se, contrastantes com a desvergonha do saque a grosso, do «salve-se quem puder» – com o seu cortejo de misérias –, e as profundas desigualdades neo-instaladas, quadro hoje imperante na esmagadora maioria dos Estados da restauração capitalista.

O novo poder

O caminho da justiça social aberto com a Revolução de Outubro e as respectivas realizações daí decorrentes, não podem ser separados da acção consequente do novo poder das classes trabalhadoras, assente em três vertentes fundamentais: a expropriação do poder económico e político da burguesia e dos latifundiários, a liquidação do predomínio do capital estrangeiro na economia nacional e a adopção de uma linha de desenvolvimento independente e progressista.
Não pode ser assacada, de forma alguma, ao novo poder responsabilidades de radicalização revolucionária. A verdade é que o governo soviético se viu confrontado, em circunstâncias históricas extremas, com a reacção desenfreada interna, conluiada numa «Santa Aliança» com os círculos imperialistas das potências dominantes. O terror branco, o intervencionismo estrangeiro e a guerra civil foram as marcas da guerra de morte imposta à República Soviética, e que esta se viu obrigada a combater e vencer, mas cujas consequências foram devastadoras. Convém recordar que ainda em Dezembro de 1917, antes do desembarque na Rússia dos respectivos destacamentos militares, a Inglaterra, os Estados Unidos e a França haviam acordado a divisão da Rússia em esferas de influência (planos que o imperialismo tem reeditado sucessivamente até aos dias que correm), e que o presidente dos Estados Unidos, Wilson (que figura no ideário burguês como o mentor da defunta Sociedade das Nações, à qual, aliás, os EUA nunca se juntaram), em Janeiro de 1918, advogava abertamente a necessidade de apoiar as forças contra-revolucionárias na Rússia e defendia o desmembramento do seu território, em aparente dissonância crassa – nunca reparada – com a sua apregoada «liberdade dos povos a disporem de si próprios»...
Apesar das circunstâncias extremamente adversas e da hostilidade imperialista, factores que, sem dúvida, acabaram por reflectir-se nas próprias condições, tornadas objectivas, que propiciaram o desenvolvimento de insuficiências e, até, trágicas deformações, o que realmente sobressai da experiência de edificação do socialismo, saída da Revolução de Outubro, é a verdade da sua afloração e afirmação na História e a manifestação do seu enorme potencial libertador. Com ela, a transitoriedade do capitalismo tornou-se tangível.
Independentemente das razões e factores que levaram à cristalização de um modelo de socialismo e ao seu ulterior colapso – cuja análise e aprofundamento, a rigor, só poderão ser realizados pelas forças comprometidas com a luta pela superação revolucionária do capitalismo, e no seu âmbito –, o apelo fundador plasmado em Outubro permanece actualíssimo, acompanhando todos os que prosseguem nos caminhos da revolução social e se batem por um projecto de sociedade socialista, neste início de século XXI.

A perseguição ao 7 de Novembro
na Rússia capitalista


Na pátria de Lenine, tudo o que «cheire» a revolução ou revolucionário deixa a classe dominante nervosa. O ajuste de contas com a Revolução de Outubro e o seu legado ocupou desde a primeira hora arautos e beneficiários da actual ordem estabelecida. Partindo da deturpação massiva da história e da sua reescrita, o regime – que já deu provas de, em caso de ameaça maior aos seus interesses, entrar a matar, bastando para isso trazer à memória a fuzilaria ordenada em 1993 contra o então Soviete Supremo – foi avançando por aí fora: perseguições políticas, restrições à organização e actividade dos partidos e reforço do controlo totalitário sobre estes, são alguns dos condimentos da ânsia de garantir a sua (irrealista) estabilidade. Isto num país, nunca é demais dize-lo, conduzido pela restauração capitalista a uma regressão humana sem paralelo em «tempo de paz», bem expressa, por exemplo, nos milhões de seres humanos (dados do PNUD) em «falta» devido à queda abrupta da esperança de vida – autêntico genocídio lento que o «humanitarismo militante» que faz carreira nos nossos tempos prefere ignorar.
No respeitante ao 7 de Novembro, o dilema que se tem colocado aos detentores do poder na Rússia reside na relação – positiva – da maioria dos russos para com aquela data e acontecimento maior da sua história. Não vá o diabo tecê-las, é melhor tratar o assunto com pinças... Com Iéltsin, o 7 de Novembro foi transmutado num patético «dia da concórdia e reconciliação nacional», mantendo-se o feriado. Este ano, e pela primeira vez desde há muito, o feriado foi retirado, ou melhor foi antecipado para 4 de Novembro, mas sob outras vestes, numa operação de prestidigitação plena: agora, com toda a pompa e circunstância, passou-se a comemorar o «dia da unidade popular», em evocação da expulsão, em 1612, do poder polaco de Moscovo! O recuo de 400 anos no tempo com o objectivo de obnubilar a incómoda actualidade de Outubro e a sua milenar dimensão libertadora, não deixa, porém, de ilustrar, simbólica e sombriamente, os sinais da época, quando em Varsóvia, na linha da frente do expansionismo da NATO, se prepara para tomar posse um presidente que preconiza uma aliança preferencial com os Estados Unidos para conter... a Rússia.


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