Democracia, Participação, Revolução
- Três vértices de um triângulo (2)

A solidariedade com a Venezuela

Miguel Urbano Rodrigues
No contexto da luta por uma democracia autêntica nos países da Nossa América, a solidariedade permanente e ampliada com o povo da Venezuela tornou se um dever militante para as forças e personalidades progressistas do Hemisfério. Não é por acaso que no Continente e mesmo na Europa se multiplicam os comités de solidariedade com a Venezuela Bolivariana. Essas iniciativas traduzem a compreensão de que o povo de Bolívar e Zamora se bate hoje não apenas em defesa de um processo revolucionário original, como por todos os oprimidos da América Latina.
A vitória de Chavez no referendo de Agosto de 2004 foi um acontecimento de significação mundial. O povo venezuelano, assumindo mais uma vez o papel de sujeito da Historia, voltou então a derrotar as forças, unidas, da oligarquia e do imperialismo. Sem a sua participação maciça não teria sido possível a vitória alcançada no confronto com a engrenagem golpista que pretendia tal como golpe de 11 de abril e no lock out petrolífero derrubar o Presidente Chavez e restaurar a engrenagem da ditadura oligárquica. O 1 Encontro Mundial de Intelectuais em Defesa da Humanidade, reunido em Caracas no final do ano passado, permitiu a amigos da Venezuela de dezenas de países verificar a tensão criadora que varre o pais e, transcendendo a realidade nacional, se traduz em projectos que reflectem o espírito da integração dos povos latino americanos, tal como a concebia Simon Bolívar, uma integração incompatível com a anexionista, de tipo ALCA, ideada em Washington. É natural que iniciativas como a Telesur, a Petrosur, a Petrocaribe, a Alba suscitem a oposição do governo Bush e contribuam para o reforço das campanhas anti Chavez na midia estadunidense. Porque cada um desses projectos, acusados de utópicos, está impregnado do espírito solidário e revolucionário do boilivarianismo. A Casa Branca e no Departamento de Estado, que não escondem a sua simpatia pelas politicas neoliberais desenvolvidas pelo governo de Lula e acompanham sem inquietação o que se passa na Argentina de Kirchner, encaram como desafio intolerável o rumo tomado pela experiência venezuelana. E porquê? Atualmente a Venezuela é um laboratório social onde se trava uma luta de classes como o mundo talvez não conhecia desde as revoluções russas de 1917. O processo bolivariano assume se já como incompatível com o capitalismo, por tímidas que sejam as reformas ate agora implantadas. Ora Washington não aceita que a meta seja a mudança radical da ordem social preexistente à eleição de Chavez.

Dificuldades

Os êxitos obtidos por Hugo Chavez e cito o líder porque a dependência dele é transparente e excessiva não devem, porem, levar a uma subestimaçao das dificuldades que ali se multiplicam e renascem, inseparáveis da própria dialéctica da vitoria. A oposição saiu desmoralizada e dividida da derrota do referendo. Mas trata de se reorganizar. É muito positivo que a grande maioria do Exercito esteja hoje identificada com o projecto revolucionário, situação inédita na América do Sul. Hugo Chavez insiste que a revolução bolivariana, contrariamente ao que ocorreu no Chile da Unidade Popular, não é uma revolução desarmada. Essa evidencia não faz esquecer que mais de uma centena de oficiais superiores das Forças Armadas estiveram envolvidos no golpe do 11 de abril. As grandes maiorias iniciais geraram no próprio governo ilusões românticas. Foi muito mais fácil substituir uma Constituição anacrónica por uma progressista do que reformar políticos formados numa sociedade como era a venezuelana. Uma parte dos que embarcaram inicialmente no navio da revolução não aguentou as primeiras tempestades. Uns ficaram pelo caminho; outros mudaram de embarcação. O sociólogo Rodolfo Sanz, no seu lúcido livro Dialéctica de una hictória adverte que uma segunda Constituinte será necessária para transformar a estrutura do Estado, para derrubar o que permanece de pé do antigo aparelho da Quarta Republica». Apesar de todos os seus esforços, o governo não controla ainda a totalidade do Estado, nem a Educação, nem a Saúde, nem o Poder Judicial, baluartes onde estruturas revolucionaria conservam ainda importantes posições.

Um potencial de combatividade

Fica implícito que identifico hoje na Venezuela bolivariana a vanguarda das lutas que os povos da América do Sul travam hoje pela democracia participativa. Seria ingénuo concluir que o processo em curso de ruptura com o sistema de dominação imperial vai desembocar numa futura revolução socialista. O desfecho da revolução libertadora, democrática e nacional, liderada por Hugo Chavez, é por ora, imprevisível. Por isso mesmo a solidariedade com os que por ela se batem aparece como mais necessária. O panorama oferecido pela América Latina, no auge de uma crise de civilização, é como já sublinhei muito contraditório. Pessoalmente sou optimista. O oportunismo e a capitulação de dirigentes populistas que suscitaram grandes esperanças mas logo esqueceram os compromissos com o povo não justifica atitudes de desalento. Do México à Argentina os povos da América Latina, com raras excepções, demonstram uma disponibilidade crescente para a luta. Temos o um exemplo comovedor de heroísmo do povo boliviano que, em condições dificílimas, enfrentando dura repressão, se levantou nos páramos andinos para derrubar dois presidentes que atuavam como procônsules do imperialismo. Mas a recusa das políticas neoliberais manifesta se em todo o espaço latino americano, da América Central e das Caraíbas ao Peru e ao Chile. Neste quadro considero alentador que a direcção zapatista, pela palavra do sub comandante Marcos, tenha há poucas semanas tomado publica uma inflexão estratégica, atravessando a ponte que separa a rebeldia da opção revolucionária. A partir de agora o EZLN declara se disponível para participar ao lado ao lado dos trabalhadores mexicanos nas grandes lutas sociais do povo de Cuauhtemoc que transcendem o âmbito do indigenismo. Mobilizar para acções concretas, coordenadas, esse formidável potencial de combatividade é um grande desafio para as organizações e partidos revolucionários do Continente e para os movimentos sociais progressistas que recusam o discurso dos reformadores do capitalismo.

Por um novo internacionalismo

Sendo a América Latina uma área submetida à dominação imperialista, a articulação das lutas dos seus povo com as que se desenvolvem noutras Regiões do Mundo, particularmente na Ásia e na Europa surge não apenas como dever, mas como exigência da Historia. A engrenagem de poder dos EUA, controlada hoje pela extrema direita norte americana, não tem soluções para a crise estrutural do capitalismo. A opção de Bush & Cia para retardarem a implosão do sistema agravou a crise global de civilização. As guerras «preventivas» e o saque de recursos naturais de outros povos accionaram mecanismos que ameaçam a própria sobrevivência da humanidade. Mas a irracionalidade, o assalto à razão, tal como aconteceu com o III Reich nazi está a produzir efeitos contrários aos visados por um sistema monstruoso que principia a adquirir os contornos de um IV Reich. A guerra do Iraque é uma guerra perdida. O bombardeio mediático perverso que nos apresenta como terroristas aqueles que do Tigre ao Pamir resistem à ocupação não tem o poder de criar historia através da mentira. Os minutos de silêncio pelas vítimas inocentes do 11 de Setembro, do Março madrileno e do Julho londrino não apagam a evidencia: somente no Iraque a agressão estadunidense é responsável por mais de 100 000 mortos civis. E a vida de um norte americano, de um espanhol, de um inglês não vale mais do que a de um iraquiano. A guerra do Afeganistão é outro conflito que terminará com derrota dos EUA. Que fazer, companheiros, pergunto? Não temos receitas milagrosas para derrotar o imperialismo. Os debates em torno da procura da alternativa para o neoliberalismo globalizado são quase sempre estéreis, resvalando para o discurso escolástico. A revolução é, por ora, uma esperança distante e o socialismo do futuro alternativa à barbárie assumirá forma no próprio decurso da luta, não pode ser definido antecipadamente. Mas podemos, sim, contribuir para apressar a derrocada do sistema imperial. A solidariedade, nos seus múltiplos níveis, é uma arma muito poderosa. Carlo Frabetti recordou recentemente que Cuba não é uma Ilha nem o Iraque, o Afeganistão, a Palestina. «A solidariedade internacional e a indignação perante a barbárie imperialista lembra abatem as fronteiras. Todas as fronteiras. Em todos os sentidos. De todas as maneiras.Com todo o tipo de respostas, desde as mais generosas às mais brutais.» O terror nasce hoje antes de mais do terrorismo de Estado do sistema de poder imperial que o gerou. O NÃO do povo francês à Constituição Europeia, um projecto que institucionaliza o capitalismo, encerra grandes lições para toda a humanidade. Exigindo o Sim, desfilaram por Paris Blair, Schroeder, Zapatero, Berlusconi, presidentes e primeiro ministros de toda a Europa. As burocracias sociais europeias eram favoráveis à Constituição. Os media exerceram uma pressão permanente, maciça, a favor do Sim. A campanha assumiu facetas delirantes. Um intelectual prestigiado escreveu que o NÃO teria um significado comparável à ocupação da França pela Alemanha na última guerra mundial. Apesar do massacre desinformativo, a França uns pais rico com cinco milhões de pobres votou NÃO. Volto a citar o filosofo marxista Georges Labica. Em Junho, numa conferencia em Serpa, Portugal, ele afirmou que o NÃO do seu povo implicava também solidariedade com os povos em luta do Iraque, da Palestina, da Venezuela, da Colômbia, de Cuba, de toda a América Latina, de todo o mundo. E acrescentou: «A consciência da solidariedade entre todos os oprimidos é algo muito forte, temos de criar condições para que essa solidariedade se desenvolva, rumo a um verdadeiro internacionalismo». Companheiros Vou terminar. No Brasil o povo vive sob cataratas de impossíveis. Não pretendo cair em analogias. Mas acho oportuno recordar que o NÃO francês transformou ali o impossível aparente num possível real. Lutar pela democracia participativa, a única autêntica, aquela que abre a porta à transformação radical da sociedade é o grande desafio simultaneamente nacional e ínternacionalista em defesa da humanidade. Cabe ao povo brasileiro, como sujeito da história, assumi lo.

*Concluimos hoje a publicação da intervenção de Miguel Urbano Rodrigues, proferida em 29 de Agosto, no Rio de Janeiro, no II Seminário Internacional Um Outro Olhar Sobre a América Latina


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