
- Nº 1645 (2005/06/9)
Do patriotismo, já agora
Argumentos
O SIC-Notícias tem uma rubrica intitulada «Jornal de Economia» que, em suma, tem vindo a fazer a pedagogia não apenas do Deus Mercado e dos interesses que à sua sombra se engrandecem, mas também da Economia na exacta medida em que esta, a ciência económica, foi também ela privatizada sob a divina protecção do Pensamento Único. E o «Jornal de Economia» tem um slogan autopromocional sábio e revelador que nos informa de que «há dinheiro em movimento». Trata-se de uma grande verdade que tem a ver com a grande questão que está a ser agora constantemente arremessada contra a já minguada margem de tranquilidade dos portugueses: o Défice está aí, e é preciso pagá-lo. De onde o lançamento de uma espécie de gigantesca subscrição nacional, infelizmente não voluntária, sendo chamados a participarem nela sobretudo os que vivem do seu trabalho, não os que beneficiam de outras fontes de rendimento. Como se sabe, sobretudo como vão sabendo os que por uma razão ou outra quase só alimentam as suas sabedorias com o que vêem e ouvem na TV, também algumas medidas desagradáveis são endereçadas aos que têm mais altas preocupações que a de ir vivendo com o salário médio nacional ou pouco mais, mas trata-se sempre de pequeninas colheradas do remédio amargo. E há uma excelente razão para que seja assim, sublinhe-se, pois é sabido que não convém nada incomodar os utentes de lautos banquetes, já que das suas mesas é que se espera que deslizem as migalhas que hão permitir, enfim, a prática sustentada de alguma Justiça Social, expressão esta que aliás convém evitar por ser tendencialmente desestabilizadora e subversiva. Mas voltemos um poucochinho atrás e retomemos aquela frase emblemática que nos garante haver «dinheiro em movimento». Retomemo-la porque nos parece de muito interesse sabermos, já que há dinheiro e tanto se ouvem lamúrias pela falta dele, onde diabo está ele. E, pois que se movimenta, para onde é que vai e, já agora, de onde é que vem.
Uma questão de algibeiras
Na verdade, quanto a esta última questão já sabemos a resposta: o dinheiro vem das algibeiras de quem trabalha, dos chamados trabalhadores por conta de outrem, salvo quando nem nelas chaga a entrar. É verdade que também outros cidadãos pagam impostos sem que trabalhem por conta alheia ou mesmo sem que trabalhem «tout court», mas não parece absurdo suspeitar que o dinheiro não nasce espontaneamente nas suas algibeiras -, melhor seria dizer que nas suas contas bancárias, e que de algum lado virá, isto sem prejuízo da dose de eventual dogmatismo míope que pode estar a ser contrabandeado com esta observação. O certo, certo, é que quando o senhor primeiro-ministro anunciou as medidas «duras e impopulares» (e na palavra «impopulares» está contido todo um projecto de operação do povo, não dos que olham o povo do alto dos privilégios de vária espécie) só marginalmente se propõe beliscar os interesses dos que há muito assaltaram os poderes fácticos. Foi também a televisão que me trouxe confirmação desse desequilíbrio quando nela vi os representantes do grande patronato a dizerem-se «compreensivos» perante as medidas a adoptar, eles, sempre tão ciosos das suas vantagens.
Vieram depois, quase todos no passado fim-de-semana ou pouco antes, os apelas ao patriotismo. Veio também o dr. Jorge Coelho que, como se sabe, tem a dupla vocação das tiradas demagógicas e do anticomunismo tonitruante, tarefas que aliás executa com inegável talento, dizer com notório atraso que também os seguros e banca devem dar a a sua contribuiçãozinha para o desígnio que, sendo nacional, contudo parece até então que não lhes diria muito respeito. E com isso fui compelido a reflectir, exercício saudável e sempre recomendável. É que não tenho a menor memória de que, entre os muitos sábios que nas últimas semanas vieram à TV preconizar as tais «medidas duras e impopulares», um só, não mais que um só, se tivesse lembrado de expressamente incluir banca e seguros no necessário e patriótico esforço consubstanciado em sacrifícios. Dir-se-ia, pensei eu então, que as personalidades de tão subida sabedoria não têm sentido patriótico ou, mais verosimilmente, não se atreveram a recomendar que o tivessem, o tal sentido, os que mandam nas grandes e privadíssimas áreas financeiras para as quais, de resto, na generalidade aqueles trabalham. E mais reflecti, decerto por excesso: a ser assim, que hei-de eu pensar das estações de TV que não se deram, neste caso concreto, ao cuidado de providenciar para a transmissão igualmente destacada de pareceres diferentes, do tal «contraditório» tão caro ao ex-ministro Gomes da Silva? Será que também elas têm défice de patriotismo?
Correia da Fonseca