Fascista húngaro no estádio do povo

Francisco Silva
Budapeste foi o local de realização da Universíada em 1965. E lá fomos participar nela, integrados numa delegação com razoável dimensão. As autoridades do nosso país andavam a preparar-se para receber a Universíada em 1969 (o que nunca chegou a acontecer devido ao medo que o regime, com Salazar fora dos comandos, sentiu à medida que tal possibilidade, já a pouco tempo da sua realização, se lhes foi antolhando mais concretamente; voltaremos a este esquecido facto noutra altura).
Chegámos por terra, após viagem aérea até Viena de Áustria. O autocarro que nos transportou até Budapeste teve uma paragem breve na fronteira onde nos esperava o intérprete da nossa delegação; e em Gyor uma paragem demorada, para comermos alguma coisa - quase todos provaram a famosa sopa húngara Goulash. Gyor, para a maior parte de nós tinha o atractivo adicional de ser a terra natal de Bela Guttman, o treinador de um Benfica chegado à fama de duplo vencedor da Taça dos Campeões Europeus. Entretanto os nossos zeladores [da Ordem] tiveram o seu tempo para referir como era baratinho o custo de vida em Portugal - encontrava-se o litro de vinho a uns 3$00 desse tempo (lembram-se, o Salazar é que dizia que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses?), bem como, ao entrarmos em Budapeste - preparadíssimos para o dizer -, chamando-nos à atenção para o escasso tráfego automóvel, que ali automóveis só táxis, mais os dos dignitários do governo e os dos dirigentes do Partido (eu a lembrar-me que um esgrimista húngaro, campeão do mundo de espada, por, nesses idos, ter atropelado mortalmente um transeunte, esteve para ser excluído da selecção aos JOs do México em 1968 - em qual das categorias se situaria, não consigo, ainda hoje, imaginá-lo).
De qualquer forma, chegámos a Budapeste - desta vez com treinador, Herculano Pimentel, do que nem sempre beneficiávamos - e ficámos instalados, em conjunto com as delegações italiana, francesa e japonesa, nós, uma pequena delegação, de certo modo, a preenchermos as sobras de espaço das outras três grandes delegações. Ai ficámos numa residência dos estudantes de medicina da Universidade de Budapeste, vazia por ser altura das férias de verão. Longe de Portugal, quase livres que nem uns passarinhos, não fora alguma proximidade dos zeladores vindos connosco - um presente que nos foi feito inclusive no grupo de quatro que me calhou em quarto -, mas eles também estavam em terreno adverso, não era? Parecia mesmo termos mudado de mundo!
Chegado o grande dia, que é sempre o dia da cerimónia de abertura, lá fomos todos para o Nepstadion, o Estádio do Povo.
Hoje, como tantas outros locais em Budapeste, o nome do estádio já é outro. Passou a Estádio Ferenc Puskas, um futebolista que jogou a interior esquerdo - pois é, dizia-se assim - no Real Madrid, quando este clube ganhou as primeiras cinco edições da Taça dos Campeões, uma série quebrada pelo Benfica ao ganhar ao Barcelona. Benfica que voltou a ganhar na sétima edição contra o Real de Madrid. Nesta, aos golos iniciais de Puskas, Eusébio, no seu característico jeito, respondeu e superou com 3 ou 4, para gáudio de tantos nós. Pois eu não sabia da mudança de nome do Nepstadion quando há poucos anos, de volta a Budapeste, o referi e recebi de volta, num tom escandalizado, a informação que o Estádio já não era do Povo mas do heróico Puskas.
Então, chegámos ao Nepstadion. Entrámos no cortejo na nossa ordem antecedidos pela delegação da Polónia como de costume, tendo à frente do nosso porta-estandarte um jovem húngaro empunhando um letreiro com a palavra PORTUGALIA, nome dado ao nosso país, também usual em diversas das línguas daqueles lados. E fomos desfilando pela da pista de atletismo do estádio. Tudo normal, tudo previsto (hoje, em Portugal, em boa parte dos estádios, daqueles onde os futebolistas evoluem, já não o poderíamos fazer, mesmo se fôssemos a equipa de futebol, porque eles não dispõem de pistas de atletismo).
Eis senão quando um espectador, sentado numa cadeira de rodas, entre outros estacionados na borda da pista de atletismo - outros que a 2.ª Grande Guerra tornara deficientes motores -, excitadíssimo à nossa passagem, em frenética saudação fascista urrava: Salazar, Salazar, Salazar, Portugália, Portugália, Portugália.
Era o tal fascista húngaro, porventura eternamente grato pela guarida dada a Horthy em Portugal. E é que não havia buracos para nos metermos por ali abaixo, para desaparecermos do palco do Nepstadion


Mais artigos de: Argumentos

Morte e transfiguração <br>do cardeal Bento Ratzinger

De certo modo inesperada, a aclamação de Bento XVI foi rápida e consensual entre os cardeais do Conclave. Mas provocou danos colaterais de extensão ainda por definir e que, como tudo indica, vão ter consequências negativas nos níveis da igreja que se situam abaixo dos colégios episcopais.A nota que mais se destacou no...

Um rosto para o inimigo

O tema daquela emissão do «Prós e Contras» era a «Corrupção – inimigo sem rosto», mas a RTP, esforçadíssima como sempre, lá conseguiu arranjar um rosto: o de Isaltino Afonso de Morais, o presidente da Câmara de Oeiras que Durão Barroso conseguiu um dia convencer a «subir» a ministro, coisa que o autarca não queria, ao...