- Nº 1639 (2005/04/28)
Dos Hospitais SA aos Hospitais EPE

Saúde pública, interesses privados

Temas
O Governo PS acabou de anunciar a transformação dos 31 Hospitais SA em Hospitais EPE, acrescentando que isso significava o seu regresso ao sector público. A maioria dos portugueses, e nomeadamente os trabalhadores desses hospitais, poderão pensar que agora as condições de trabalho e de prestação dos cuidados de saúde passarão a ser diferentes. No entanto, uma análise mais profunda da situação leva à conclusão que as mudanças poderão não ser significativas.

As chamadas EPE (Empresas Públicas Empresariais) são reguladas pelo capítulo III do Decreto-Lei 558/99 e, subsidiariamente, em relação a tudo que não estiver neste capítulo, pelas restantes normas do mesmo decreto.
De acordo com o artº 26 do Decreto-Lei 558/99, que faz parte do referido capítulo III, o capital das EPE é «detido pelo Estado ou por outras entidades públicas». Esta disposição, relativamente as normas que regulavam os Hospitais SA, é positiva na medida que impede a privatização destes hospitais através da entrada de capitais privados, pois impõe que o capital de uma EPE seja exclusivamente público.
No entanto, o ministro Correia Campos, em declarações aos órgãos de informação, já veio anular este aspecto positivo daquele decreto-lei ao afirmar textualmente o seguinte: «Não excluo a participação de capital privado nas EPE, e mais não digo» (Diário Económico, de 8 de Abril de 2005), o que naturalmente pressupõe a alteração da lei que regulamenta as empresas públicas. Tenha-se presente que o ministro da Saúde do governo PSD/PP nunca se atreveu a dizer tal coisa, e sempre afirmou que o seu governo não privatizaria qualquer parcela do capital dos Hospitais SA. Correia de Campos, ministro da Saúde do Governo PS, mal assumiu o Ministério da Saúde sentiu necessidade de tornar clara a posição que defende, embora contradizendo o 1º ministro do Governo a que pertence, pois este afirmara publicamente que «o Governo não quer avançar no domínio da privatização» (O Comércio do Porto, de 8 de Abril de 2005). Um mau começo certamente.
Para além da norma legal referida anteriormente, os Hospitais EPE «regem-se pelo direito privado, salvo no que estiver disposto no presente diploma e nos diplomas que tenham aprovado os respectivos estatutos» (artº7, nº1 do DL 558/99); são tutelados pelo ministro das Finanças e da Saúde (artº 29); as « relações entre empresas públicas e o Estado ou entre outros entes públicos não poderão resultar situações que, sob qualquer forma, sejam susceptíveis de impedir, falsear ou restringir a concorrência no todo ou em parte do território nacional» (artº 8º), o que significa que, para além do capital inicial e do pagamento dos cuidados de saúde feito com base numa tabela de preços, o Estado não poderá conceder subsídios, como sucede nos Hospitais do SPA (Sector Público Administrativo) quando tal for necessário, o que aumentará a pressão económica sobre a gestão destes hospitais. Em resumo, na prática, normas que não diferem das que regulavam os Hospitais SA.

A empresarialização dos hospitais EPE

Em termos de gestão, as diferenças entre os Hospitais SA e Hospitais EPE são praticamente inexistentes. Como consta do próprio programa do governo PS, este Governo propõe-se «dotar os hospitais públicos de mecanismo de gestão efectiva, prosseguindo o processo de empresarialização» (pág. 79 do Programa). E se a intenção é prosseguir, como se afirma textualmente no programa de governo PS, só pode ser a empresarialização iniciada pelo governo do PSD/PP, pois foi a única começada.
Mas o que significa a empresarialização dos hospitais públicos, ou seja, a gestão economicista da saúde, que o Governo PS pretende prosseguir? Para responder a esta questão vai-se recordar dois exemplos da aplicação do princípio da empresarialização nos Hospitais SA pelo governo PSD/PP, empresarialização essa que o actual Governo pretende prosseguir.
E esses exemplos paradigmáticos são os contratos programa assinados pelo Ministério da Saúde com cada Hospital SA e a proposta de ACT para os Hospitais SA apresentado pelo Ministério da Saúde aos sindicatos.
De acordo com esses contratos programa os Hospitais SA recebiam mais por não fazer do que por fazer para além da «meta da produção acordada» como mostram os dados do quadro I que foram retirados de um desses contratos, que é um contrato tipo muito semelhante ao que foi assinado com todos os outros hospitais SA.
Como mostram os dados do quadro, por cada prestação que não fizesse abaixo da meta de produção acordada o Hospital SA recebia praticamente o dobro do que receberia por cada prestação de saúde que fizesse acima da meta de produção contratada. E a razão era puramente economicista.
Para compreender a razão eminentemente economicista desta disposição que consta de todos os contratos assinados pelos Hospitais SA é necessário ter presente o seguinte: até à meta de produção acordada, o Hospital recebia do Ministério da Saúde por cada internamento realizado 2129 euros e, por cada consulta, 61 euros. São estes os preços normais que o Ministério da Saúde teria de pagar até atingir a meta de produção por cada acto de saúde realizado.
Assim, quando não realiza um internamento e mesmo que o Estado tenha de pagar 1256 euros, o governo PSD/PP «poupava» 873 euros, que é a diferença entre aquilo que teria de pagar se esse internamento tivesse sido realizado (2129 euros) e aquilo que tem de pagar se esse internamento não se realizar (1256 euros). Em relação à consulta não realizada a quantia «poupada» pelo Estado por o Hospital não a realizar é de 25 euros. Portanto, é desta forma que se tencionava poupar, incentivando os Hospitais SA a não atingir a chamada «produção acordada».
Em relação às prestações de saúde realizadas para além da meta acordada, os valores baixos têm também como objectivo desencorajar a sua realização. E as razões são também eminentemente economicistas, embora isso possa ter consequências graves na saúde da população. E isto porque a realização de prestações de saúde à população para além das metas acordadas determinaria que o Estado teria de gastar mais do que no orçamento aprovado.

Ganhar à custa dos trabalhadores

Vejamos agora a proposta de ACT para os Hospitais SA apresentada pelo Ministério da Saúde aos Hospitais. Para compreender as razões deste tipo de proposta é preciso ter presente que no sector de saúde as despesas com pessoal representam mais de metade das despesas totais de qualquer hospital. Na óptica da empresarialização da saúde, ou seja, da gestão economicista da saúde, se se quiser «poupar» é precisamente neste tipo de despesas que as poupanças podem ser maiores, porque são precisamente estas que têm maior peso.
E no lugar de se procurar aumentar a eficiência e a eficácia como são utilizados os meios humanos de que dispõe cada hospital para assim melhorar o serviço prestado à população e diminuir o custo de cada acto de saúde, o que se procurou fazer foi atingir os direitos dos profissionais da saúde, como provam as cláusulas mais importantes dessa proposta patronal enviada aos sindicatos pelo Ministério da Saúde do governo PSD/PP que se apresentam seguidamente.

• Aumento do horário de trabalho de 7 horas diárias e 35 horas semanais para 8 e 40 horas ou 48 horas (Cláusula 26);

• Redução da remuneração hora, em média, em 30% para os médicos, em 10% para os enfermeiros, e entre 9,7% e 16,3% dos outros trabalhadores;

• O trabalho nocturno com direito a um acréscimo de remuneração seria apenas o trabalho realizado entre as 24 horas e 7 horas (Cláusula 81);

• Generalização do contrato de comissão de serviço, que é um contrato precário, a todos os profissionais de saúde pois seriam considerados cargos de confiança (Cláusula 64);

• Alargamento da definição do local de trabalho que deixaria de ser apenas a unidade de saúde onde trabalha o profissional (Cláusula 25);

• Transferência obrigatória de local de trabalho para outra unidade de saúde mesmo sem o acordo do trabalhador (Cláusula 70);

• O período normal de trabalho deixa de ser calculado diariamente e passa a ser feito em termos médios para o período de 6 meses (Cláusula 27), com o objectivo de reduzir o pagamento de trabalho extraordinário e sujeitar a vida do trabalhador aos objectivos da gestão;

• Aspectos essenciais (avaliação, promoções, etc.) seriam remetidos para Regulamentos Internos em que não há negociação, sendo o poder da entidade patronal absoluto.

E as questões que se colocam são nomeadamente as seguintes:
- Será esta a empresarialização que o Ggoverno PS pretende prosseguir como consta do seu Programa?
- Poderá uma empresarialização, ou seja, uma gestão economicista da saúde em que a preocupação fundamental é reduzir custos e não prestar um melhor serviço de saúde à população, ser muito diferente da revelada nos dois exemplos concretos anteriores? Estamos cá para ver, mas o que se pode já afirmar é que os indícios anunciados são preocupantes para o Serviço Nacional de Saúde e para os portugueses.

Aplicação do Código do Trabalho aos Hospitais EPE

De acordo com o nº3 do artº 1 da Lei nº 23/2004, a lei do contrato individual do trabalho para a Administração Pública não se aplica às empresas públicas. E de acordo com o artº 23 do Decreto-Lei 558/69 as EPE são equiparadas a empresas públicas, por isso estão excluídas da aplicação da Lei do contrato individual de trabalho para a Administração Pública.
Como afirmam Maria de Palma Ramalho e Pedro Madeira de Brito, na obra que publicaram - Contrato de Trabalho na Administração Pública - «no caso em que a exclusão não venha a ser acompanhada de legislação especial, aplica-se o Código do Trabalho aos contratos celebrados por estas instituições» (pág. 11). Portanto, parece ser liquido que o Código do Trabalho se aplica aos Hospitais EPE como se aplicava aos Hospitais SA.
A verificar-se isto é possível a generalização dos contratos individuais de trabalho nos Hospitais EPE, o que determinará a destruição das carreiras dos profissionais de saúde, as quais tem garantido uma qualidade mínima nos serviços de saúde prestados à população, nomeadamente têm permitido aos profissionais de saúde resistir a medidas que visam a degradação dos serviços com base em argumentos de natureza económica e política.
A verificar-se a aplicação do Código do Trabalho aos Hospitais EPE são possíveis propostas de ACT como aquela que o governo PSD/PP apresentou aos sindicatos para os Hospitais SA. Seria necessário apenas mudar nela o SA por EPE e desta forma a lei seria cumprida.

Privatização da saúde em Portugal e o programa do Governo PS

Para se poder compreender as diferenças entre o Programa do PSD para a área da saúde e o Programa do PS para o mesmo sector, interessa recordar como o PSD procurou privatizar o Serviço Nacional de Saúde, ou melhor, qual o conteúdo das leis que publicou com esse objectivo, que estão em vigor, e o que consta no Programa do governo PS relativamente a essas leis.
O PSD/PP, enquanto foram governo, aprovaram e fizeram publicar um conjunto leis que visavam a privatização do Serviço Nacional de Saúde. E essas leis foram a Lei 27/2002, que alterou cirurgicamente a Lei de Bases da Saúde; uma nova Lei de Gestão Hospitalar; o Decreto-Lei 185/2002, a chamada Lei de Parceria Público Privado; e o Decreto-Lei 60/2004, a chamada Lei dos centros de saúde.
Todas estas leis contêm normas que permitem a entrega de instalações, equipamentos ou mesmo serviços da unidades de saúde construídas com dinheiros públicos à exploração por entidades privadas com fins lucrativos.
Assim, a Lei 27/2002 – Nova Lei de Gestão Hospitalar - permite a «concessão ou exploração de um centro de responsabilidade ou serviço de acção médica a grupos de profissionais de saúde ou entidades públicas ou privadas que demonstrem capacidade e competência técnica» (artº10). O Decreto Lei 185/2002 – Hospitais PPP - permite a assinatura de um trato de gestão com «uma sociedade comercial que tem como objecto assegurar as prestações de saúde» e «a concepção, construção, financiamento e exploração dos novos hospitais» (artº8), portanto permite a entrega da construção e da exploração dos novos hospitais a grandes grupos económicos. E o Decreto Lei 60/2003 - Centros de Saúde - permite a «a gestão de um centro, ou de uma extensão, ou de partes funcionalmente autónomas por entidades públicas ou privadas, com ou sem fins lucrativos que demonstrem capacidade» (artº 23).
Para além de tudo isto, o governo PSD/PP alterou três bases da Lei de Bases da Saúde, sendo duas delas extremamente importantes para a privatização da saúde, que são: - uma que permite aplicar aos profissionais de saúde a trabalhar no SNS o contrato individual do trabalho, ou seja, o Código do Trabalho; e a outra que permite o pagamento dos actos de saúde realizados com base numa tabela de preços.
A questão que se coloca é esta:- O que consta no Programa do PS sobre todas estas leis e medidas que visam claramente a privatização da saúde pública em Portugal? Apenas o seguinte:

• Revogar o Decreto Lei 60/2003 dos Centros de Saúde e substituir por um novo diploma (pág. 79 do Programa). No entanto, não diz nada sobre os objectivos do novo diploma.

• Proceder à avaliação da experiência dos 31 Hospitais SA e operar a sua transformação em Entidades Públicas Empresariais (EPE). Dotar os Hospitais Públicos de mecanismos de gestão efectiva, prosseguindo o processo de empresarialização (pág 80).

• Rever (não revogar) o modelo de parcerias público-privadas (PPP) sem prejuízo do compromisso contratual (os concursos já lançados pelo governo PSD/PP que são os dos hospitais de Loures e Braga vão continuar) e assegurar a transparência dos processos em curso (pág. 80).

E o que é que não consta no Programa de Governo PS?

• Não consta revogar as 3 alterações à Lei de Bases da Saúde feitas pelo PSD/PP

– Na BASE XXI, que trata do «Estatuto dos Profissionais de saúde do SNS» o PSD/PP acrescentou o seguinte: - « …sendo alargado o regime laboral aplicável, de futuro, à lei do Contrato Individual de Trabalho e à contratação colectiva».
– Na BASE XXXIII o PSD/PP acrescentou : - «O SNS é financiado pelo OE, através do pagamento dos actos e actividades segundo uma tabela de preços».
– Na BASE XXXVI o PSD/PP acrescentou um nº3:- «A lei pode prever a criação de unidades de saúde com natureza de sociedades anónimas (SA) de capitais públicos».

• Não consta revogar a nova Lei de Gestão Hospitalar que permite a privatização de serviços dos hospitais públicos e os Contratos Individuais de Trabalho, nem revogar o Decreto-Lei 185/2002 que permite a entrega da construção e exploração dos novos hospitais aos grandes grupos económicos, nomeadamente aos Mellos. Apenas está prevista a sua revisão. No entanto, Correia Campos, em conferência de imprensa referiu a possibilidade da construção e a exploração de pelo menos cinco novos hospitais poderem ser entregues a grupos económicos privados (Diário Económico, 8 de Abril de 2005).

Apesar da mudança de nomes (SA para EPE), e das declarações solenes do 1º ministro garantindo que o Governo não tenciona privatizar o SNS, algumas das intenções do Ministério da Saúde já tornadas públicas pelo respectivo ministro não podem deixar de gerar preocupações, na medida em que são a continuação do que foi iniciado pela maioria PSD/PP enquanto foi governo, como ficou provado neste estudo.

Eugénio Rosa