
- Nº 1639 (2005/04/28)
A traição de Gutiérrez
Equador na encruzilhada
Internacional
Após vários dias de manifestações populares gigantescas, Lúcio Gutiérrez, que incarnou as esperanças das grandes maiorias equatorianas, foi varrido do poder.
Em 2002, pensou-se que Lúcio Gutiérrez fosse feito de outra massa, que não a da maioria dos políticos do continente. Houve mesmo quem visse nele uma versão moderna do peruano Velasco Alvarado ou do boliviano Torres, para não falar do venezuelano Chávez, de quem chegou a afirmar-se admirador. Chegado ao poder, tornou-se num excelente aluno de Bush. Arrastou o Equador para o Plano Colômbia, alienou ainda mais a soberania nacional, fechou os olhos à corrupção, atrelou a economia do país aos desejos das multinacionais norte-americanas… e o resultado foi que perdeu apoio popular, nomeadamente do movimento indígena por ter «traído as suas promessas». No final de 2004, sofre uma pesada derrota eleitoral: ganha uma das 22 divisões provinciais do país. Então, deve ter-lhe ficado claro que não seria longa a sua permanência em Carondelet, e começou uma fuga para a frente, que terminou na partidarização do Poder Judicial, passando pela anulação dos processos contra Noboa e Bucaram e permitindo o seu regresso ao país, antecedentes mais próximos desta crise
final. Quem tinha dito que os militares não voltariam a disparar sobre o povo, deitou mão da repressão feroz, mas nem o apoio das Forças Armadas – mais tarde deixá-lo-iam cair – nem a visita de última hora da embaixadora norte-americana, quando já estava praticamente sitiado no palácio, puderam evitar-lhe o pior.
Para onde vai o Equador?
No momento em que escrevemos, Gutiérrez está no Brasil, como refugiado. Alfredo Palácio, que foi ministro de Saúde no governo de Sixto Durán (1992/96) – o último presidente que terminou o seu período – despacha desde Carondelet. Vários anos afastado da política, regressou a ela em 2002 para acompanhar Gutiérrez, de quem se afastaria em Janeiro do ano seguinte. Defendia orientar os recursos do Estado para o pagamento da «dívida social» e a criação de programa de sanidade gratuita. Chegou mesmo a dizer que o Equador vivia sob uma «ditadura». Recentemente afirmou que o país está em coma e precisa de uma cirurgia.
É certo, o modelo económico seguido por Gutiérrez está esgotado, no Equador e não só, não importa os remendos que lhe façam o FMI e o Banco Mundial.
Gutiérrez, por ter escolhido o caminho da traição, traçou o destino que tem hoje. Contudo, a situação do país continua pouco nítida. O movimento que o derruba ao grito de Fora todos! não parte das classes populares nem do movimento indígena, mas sim classe média tradicionalmente elitista. A rádio, a telefonia celular e a Internet são os seus meios de comunicação, juntando formas conhecidas de protesto – bater das caçarolas – a outras mais criativas, como o rebentar de balões ou sair à rua com rolos de papel higiénico para significar que o regime é uma porcaria. Num país claramente dividido em termos sociais e étnicos, não deixa de surpreender e preocupar que durante as manifestações tenham sido expulsas delas certas pessoas por serem de partidos ou grupos organizados.
Se é certo que Gutiérrez não ia na direcção correcta, também não está claro para onde vai este Equador, que pertenceu à Grande Colômbia, um vasto território que incluía Equador, Panamá, Colômbia e Venezuela, e se fracturou em 1830, o mesmo ano em que morreu Simão Bolívar.
O vendedor de promessas
O presidente agora afastado é o que em 2002 ganhou as eleições quando competiu contra o magnata Álvaro Noboa, membro do Opus Dei. O mesmo? Certamente que não.
Em 1998, Gutiérrez dá corpo ao descontentamento de amplos sectores do seu povo, nomeadamente dos grupos mais combativos e progressistas – que incluíam o movimento indígena, que tinha aparecido na cena política em 1990 – e derruba o governo de Jamil Mahuad.
É preso. Uma vez recuperada a liberdade, forma a Sociedade Patriótica 21 de Janeiro e é à frente desta formação e apoiado pelos movimentos sociais e progressistas do país – indígenas incluídos – que chega ao Palácio de Carondelet, belo edifício construído entre o século XVII e começos dos XIX pelo Barão Héctor de Carondelet, presidente da Real Audiência de Quito. Enquanto andou em campanha eleitoral, Gutiérrez declarou-se contra o Tratado de Livre Comércio – mecanismo de Washington para garantir a espoliação das economias latino-americanas –, contra a base dos Estados Unidos em Manta e anunciou uma guerra aberta contra a corrupção. A não ter feito estas e outras promessas, não teria passado de candidato presidencial.
Ao serviço da dívida
As estatísticas oficiais do Equador revelam que 70 por cento dos fundos nacionais se destinam ao serviço da dívida externa do país, 20 por cento são para estabilizar as receitas e apenas 10 por cento se destinam a serviços sociais, saúde e educação.
De acordo com o ministro da Economia, Rafael Correa, citado pela Prensa Latina, esta situação coloca no topo das prioridades a renegociação da dívida externa do Equador. O ministro considera que os rendimentos do petróleo devem ser postos ao serviço da população, sob pena de se continuar a generalizar a miséria.
Vale a pena lembrar que, no Equador, por cada 10 barris de petróleo vendidos, as receitas de seis vão para o pagamento de dívidas a governos, bancos e diversos organismos de crédito.
A política económica equatoriana, submetida aos ditames do pagamento da dívida externa, que ascende a 16 mil milhões de dólares, fez com que num total de 12 milhões de habitantes cerca de nove milhões vivam na pobreza. A situação agravou-se com a dolarização (troca do sucre, moeda nacional, pelo dólar, a partir de 2000).
Apresentada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como uma forma de evitar a hiperinflação, a dolarização revelou-se incapaz de conter as altas taxas de inflação no país. Para o ministro Rafael Correa esse foi o «pior erro» financeiro da história do país.
Pedro Campos