Uma comida triste
Fan Shan
Pequim – China
Querida amiga :
«Foi uma comida triste», disseste tu, com uma voz ainda mais triste do que a tristeza dessa comida.
Percebia-se. O teu pai ia ser internado para ser operado, por causa de uma dessas doenças que nos gela a alma quando lhe ouvimos o nome. Além disso, no teu país vivem-se momentos de inquietação por causa dessa «pneumonia atípica» que além de matar algumas pessoas, assusta.
Contas-me que nas enormes avenidas de Pequim, não há os engarrafamentos de todos os dias e se pode circular a 100 km por hora. Contas-me que nesse restaurante onde me levaste a almoçar na primeira vez que comi na China e onde voltámos mais vezes, contas-me, dizia eu, que das cem mesas que normalmente estão cheias de gente, de comida, de vida, agora não há mais do que três ou quatro ocupadas. Um restaurante, como esse, vazio, já é um grande sinal de tristeza.
Percebia-se que esse medo está a travar a enorme velocidade a que o teu povo se habituou a mexer, para depois de cinco milénios de nação, sair finalmente da fome, do atraso e da dominação alheia.
Percebia-se. Mas fiquei a pensar. Que culpa tem a comida da tua, da vossa, da nossa tristeza? É a comida que está triste ou somos nós?As comidas parecem tristes quando temos problemas, o trabalho não corre bem, o amor arrefece, o amigo está doente, o ordenado acaba antes do fim do mês, o ministro é idiota, mas aparece todos os dias na televisão, ou quando te dizem que a guerra vai ser uma coisa boa.As comidas parecem ainda mais tristes quando não tens trabalho, o teu amor acabou, perdeste para sempre o teu amigo, o ministro idiota já é primeiro ministro, e já te dizem que a guerra foi boa. Mas sobretudo quando vês a sem-razão, a estupidez, a desumanidade transformar-se em governo do mundo e te sentes pequenina e sem força para lutar contra tanto Tomahawk, tanto B-52 e tanta televisão.
Não amiga, a comida não é triste.
O que é triste é a fome. Por isso respeito os dirigentes políticos do mundo que colocaram como primeiro objectivo acabar com a fome. Como os da Rússia dos Sovietes, como os da China depois da derrota interna da cruzada anticomunista alcunhada de «Revolução Cultural». Como os do recente governo brasileiro de Lula, com as janelas da esperança todas abertas. Por isso admiro pessoas que com o seu trabalho abrem portas, como fez no século XVIII o médico militar francês Parmentier que sempre acreditou que a batata, chegada da América e desconhecida na Europa, podia alimentar e salvar da morte a milhões de pessoas, como assim veio a acontecer em França, Irlanda e outros países.
Por isso admiro pessoas que com um minuto de reflexão, dão anos de luz ao pensamento, como o humorista gráfico espanhol, Forges, que põe um boneco a dizer «Este Lula diz que o objectivo do seu governo é que as crianças brasileiras possam comer três vezes por dia». E o outro boneco (com o clássico chapéu alto e a bandeira dos Estados Unidos) responde-lhe: «Esse tipo é mesmo perigoso. Tem que se acabar com ele rapidamente.»
Por isso não admiro os dirigentes políticos de tantos países, (de África, por exemplo) alguns deles tão perto de nós, portugueses, que pendurados dos seus Rolex de ouro, fardados por Armani, enlatados em Mercedes e abancados na Suíça, não vêem a fome dos seus povos, que antes deles Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Samora Machel, Ben Bela, ou Patrice Lumumba libertaram.
Amiga: outro dia, algum dia, escrever-te-ei sobre os melosos cogumelos com fatias de bambu que me fizeste descobrir, a imensa variedade de legumes de todas as cores, as texturas, as consistência, os sabores da vossa cozinha sabia e culta ate ao infinito. Algum dia, outro dia, te direi da minha raiva, sempre repetida, ao ver como o império do sabor único (mac Donald, Coca Cola e Kentucky não sei que) lentamente se vão introduzindo nas vossas grandes cidades , não pela qualidade do produto mas pelo bombardear dos anúncios.
Hoje deixo-te um abraço de esperança na segura recuperação do teu pai, e a certeza de que não haverá epidemia que páre a constância humilde do trabalho do povo da China.A ti convido-te a que cada comida seja um acto de alegria e beleza, nunca de tristeza.
Querida amiga: Triste é ter fome e não ter que comer.
Pequim – China
Querida amiga :
«Foi uma comida triste», disseste tu, com uma voz ainda mais triste do que a tristeza dessa comida.
Percebia-se. O teu pai ia ser internado para ser operado, por causa de uma dessas doenças que nos gela a alma quando lhe ouvimos o nome. Além disso, no teu país vivem-se momentos de inquietação por causa dessa «pneumonia atípica» que além de matar algumas pessoas, assusta.
Contas-me que nas enormes avenidas de Pequim, não há os engarrafamentos de todos os dias e se pode circular a 100 km por hora. Contas-me que nesse restaurante onde me levaste a almoçar na primeira vez que comi na China e onde voltámos mais vezes, contas-me, dizia eu, que das cem mesas que normalmente estão cheias de gente, de comida, de vida, agora não há mais do que três ou quatro ocupadas. Um restaurante, como esse, vazio, já é um grande sinal de tristeza.
Percebia-se que esse medo está a travar a enorme velocidade a que o teu povo se habituou a mexer, para depois de cinco milénios de nação, sair finalmente da fome, do atraso e da dominação alheia.
Percebia-se. Mas fiquei a pensar. Que culpa tem a comida da tua, da vossa, da nossa tristeza? É a comida que está triste ou somos nós?As comidas parecem tristes quando temos problemas, o trabalho não corre bem, o amor arrefece, o amigo está doente, o ordenado acaba antes do fim do mês, o ministro é idiota, mas aparece todos os dias na televisão, ou quando te dizem que a guerra vai ser uma coisa boa.As comidas parecem ainda mais tristes quando não tens trabalho, o teu amor acabou, perdeste para sempre o teu amigo, o ministro idiota já é primeiro ministro, e já te dizem que a guerra foi boa. Mas sobretudo quando vês a sem-razão, a estupidez, a desumanidade transformar-se em governo do mundo e te sentes pequenina e sem força para lutar contra tanto Tomahawk, tanto B-52 e tanta televisão.
Não amiga, a comida não é triste.
O que é triste é a fome. Por isso respeito os dirigentes políticos do mundo que colocaram como primeiro objectivo acabar com a fome. Como os da Rússia dos Sovietes, como os da China depois da derrota interna da cruzada anticomunista alcunhada de «Revolução Cultural». Como os do recente governo brasileiro de Lula, com as janelas da esperança todas abertas. Por isso admiro pessoas que com o seu trabalho abrem portas, como fez no século XVIII o médico militar francês Parmentier que sempre acreditou que a batata, chegada da América e desconhecida na Europa, podia alimentar e salvar da morte a milhões de pessoas, como assim veio a acontecer em França, Irlanda e outros países.
Por isso admiro pessoas que com um minuto de reflexão, dão anos de luz ao pensamento, como o humorista gráfico espanhol, Forges, que põe um boneco a dizer «Este Lula diz que o objectivo do seu governo é que as crianças brasileiras possam comer três vezes por dia». E o outro boneco (com o clássico chapéu alto e a bandeira dos Estados Unidos) responde-lhe: «Esse tipo é mesmo perigoso. Tem que se acabar com ele rapidamente.»
Por isso não admiro os dirigentes políticos de tantos países, (de África, por exemplo) alguns deles tão perto de nós, portugueses, que pendurados dos seus Rolex de ouro, fardados por Armani, enlatados em Mercedes e abancados na Suíça, não vêem a fome dos seus povos, que antes deles Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Samora Machel, Ben Bela, ou Patrice Lumumba libertaram.
Amiga: outro dia, algum dia, escrever-te-ei sobre os melosos cogumelos com fatias de bambu que me fizeste descobrir, a imensa variedade de legumes de todas as cores, as texturas, as consistência, os sabores da vossa cozinha sabia e culta ate ao infinito. Algum dia, outro dia, te direi da minha raiva, sempre repetida, ao ver como o império do sabor único (mac Donald, Coca Cola e Kentucky não sei que) lentamente se vão introduzindo nas vossas grandes cidades , não pela qualidade do produto mas pelo bombardear dos anúncios.
Hoje deixo-te um abraço de esperança na segura recuperação do teu pai, e a certeza de que não haverá epidemia que páre a constância humilde do trabalho do povo da China.A ti convido-te a que cada comida seja um acto de alegria e beleza, nunca de tristeza.
Querida amiga: Triste é ter fome e não ter que comer.