Pelos caminhos do mundo

O velho iraniano e a memória do mazdaquismo

Era uma urina humana, tão velho que não lhe imaginei a idade.
A pele, apergaminhada, escura, fazia pensar numa múmia viva retirada de um sarcófago egípcio.
O encontro aconteceu numa aldeia de casebres de barro, não longe do vale do Murghab, no Noroeste do Afeganistão.
Fumava ópio numa chaikana, igual a qualquer outra das casas de chá que se encontravam naquele ano de 86 em todo o país.
O intérprete tinha informado que na região vivia um ancião sábio, capaz talvez de responder às estranhas perguntas que eu formulava.
A estranheza, para ele, era a minha curiosidade sobre a história antiga dos povos iranianos do Korassan.
Eu tinha lido muitas páginas sobre o mazdaquismo e pretendia perceber.
« Mazdak foi talvez o primeiro comunista do mundo...»
Assim começou o monólogo. Era um contador de estórias que embruxava. Pressenti-lhe a arte encantatória e quase não o interrompi.
«Mazdak nasceu em lugar incerto, perto de Nichapur, faz um tempo sem fim, quando senhoreava estas terras o imperador Kavadh, pai do grande Cosroes, que foi o nosso César e derrotou e humilhou os romanos do Oriente, porque os do Ocidente já eram então pó na história. Na Pérsia, assim se chamava na época, o povo pequeno sofria. Os citas da estepe e os hunos heftalitas invadiam o país, roubavam o gado e saqueavam as cidades e havia fome.
Foi quando Mazdak apareceu e começou a pregar a revolução. Ensinava coisas que nunca em parte alguma tinham sido ditas. Parecia falar como Mani, o criador de uma nova religião que corria pela Ásia inteira, mas eram muito diferentes. Mazdak chamava à luta e à revolta. A felicidade dos homens para ele só podia ser atingida através de muito sofrimento, de muita luta, porque era preciso primeiro tirar o poder aos grandes senhores e isso não seria possível sem violência. O mundo não mudaria enquanto não fossem partilhadas as riquezas.
Mazdak foi o pai daquilo a que hoje chamam a reforma agrária. A que ele fez foi a primeira de todas. As terras dos ricos foram ocupadas pelos pobres que as cultivaram sem as partilhar. E derrubou os haréns e libertou as mulheres que neles viviam fechadas, os haréns que muito mais tarde serviram de modelo aos dos árabes, quando destruíram o Império Sassanida.»

Medo das ideias

Não havia revelações no relato do velho iraniano, mas o cenário, a maneira de contar, os gestos, a voz, o céu sem fundo daquela aldeia do Korassan ajudavam-me a caminhar pelos séculos, imaginando, vendo o que não podia ver.
Eu sabia que a revolução mazdaquista fora uma gigantesca explosão social na Pérsia Sassânida onde o feudalismo se implantou antes de surgir na Europa. A insurreição dos camponeses servos contra os senhores configurou ali uma luta de classes inédita. O mazdaquismo varreu o Irão como uma tempestade revolucionária sem precedentes. O imperador, de início, apoiou, empenhado em reduzir o poder da aristocracia, num país onde se nascia e morria na mesma classe, sem possibilidade de ascensão social.
Eu conhecia o desfecho, mas pedi ao velho sábio que explicasse como o povo fora vencido depois de ter dividido as terras com a aprovação do rei «A revolução - ditou - incendiou a Pérsia inteira. Os sacerdotes do zoroastrismo, que era a religião oficial, juntaram forças, pela primeira vez com os cristãos nestorianos, que eram então muito numerosos e conseguiram destronar o rei Kavadh e metê-lo na prisão. Muitas cidades foram saqueadas e Mazdak não conseguiu controlar a fúria das populações. O rei fugiu da prisão, mas quando voltou com o apoio dos hunos heftalitas, assustou-se com o caminho tomado pela revolução, e os mazdakistas começaram a ser perseguidos e a sua religião proibida e as terras foram devolvidas aos antigos senhores...»
Falou ainda durante dois ou três minutos antes de silenciar. Senti que esquecera a minha presença e partia para um mundo a que eu não tinha acesso.
Era difícil optar por uma última pergunta, porque tinha consciência de que as não formuladas deixariam em mim um sentimento de frustração. Gostaria de poder escutar o velho iraniano durante dias, mas aquele encontro era irrepetível.
Pedi-lhe apenas uma explicação sua para a ignorância existente no mundo sobre os acontecimentos extraordinários que tinham mudado a vida no Irão nas primeiras décadas do século VI.
A face permanecia imóvel enquanto falava, somente as palavras funcionavam como instrumento de contacto comigo.
«A mentira e a calúnia na história - assim respondeu – serviram para enganar os homens muito antes dos políticos e dos jornais que hoje repetem os antigos. Os árabes, quando conquistaram a Pérsia cem anos depois da revolução mazdaquista, tiveram muito medo das ideias de Mazdak e das coisas que tinham acontecido. Um historiador famoso no mundo islâmico, Tabari, tratou de apresentar nos seus livros o movimento mazdaquista como uma doutrina perversa que só teria cativado os jovens e os debochados. Levou a calúnia ao ponto de escrever que Mazdak defendera as relações sexuais do filho com a mãe e a irmã e a distribuição de mulheres pela comunidade...»
Nunca esqueci aquele diálogo com o velho afegão do Murghab.
Ele me revelou que nas planuras do Korassan não se apagou a memória da revolução mazdaquista , a tempestade social ocorrida há mil e quinhentos anos. Ela justifica o nome que alguns historiadores marxistas lhe atribuíram: «o comunismo iraniano».


Mais artigos de: Temas