Pelos Caminhos do Mundo

O deputado mudo e o jovem Gomes da Silva

Miguel Urbano Rodrigues
Guardo densa memória daquela visita à União Soviética.
Admito que, se houvesse participado de uma delegação similar, Kafka teria escrito um conto fantástico inspirado pelos seus pequenos e estranhos incidentes.
Foi no ano 91. Retribuíamos a vinda a Portugal de uma delegação do Soviete Supremo. A URSS tinha entrado em agonia. Os parlamentares soviéticos tais coisas disseram durante um jantar em Lisboa que o deputado Guilherme Silva, do PSD, fascinado, condensou o seu apreço num comentário: «Verifico com satisfação que os senhores deputados da URRS estão mais próximos ideologicamente do PSD que das ideias dos deputados Odette Santos e Miguel Urbano, presentes nesta mesa.»
Éramos seis na delegação da AR que meses depois visitou o país de Lenine: os deputados Sottomayor Cardia e Manuel Alegre do PS, eu pelo PCP, e três representantes do PSD: Pedro Roseta, o jovem Rui Gomes da Silva e um cidadão cujo nome não recordo, eleito pelo Algarve. Dele se sabia somente que estava ligado à Construção Civil. Tinha, como parlamentar, a vocação da mudez. Nunca lhe ouvi a voz no plenário de São Bento.
Pedro Roseta, que chefiava a delegação, temia os seus dois correligionários. Inteligente e culto, receava os efeitos da verborreia de um e da eventual ruptura do silencio do outro.
A primeira situação kafkiana ocorreu em Leninegrado durante um almoço oferecido à delegação pelo presidente da Câmara da cidade.
Interrompendo uma fala da tradutora que enaltecia a sabedoria militar do defunto czar Nicolau II, o deputado mudo formulou uma pergunta algo embaraçosa: «quanto custa em média em Leninegrado - indagou - o metro quadrado de terreno? Sou construtor e gostaria de saber».
O alcaide, gorbatcheviano militante, hesitou, inquieto. Não quis explicar que, sendo a URSS um país socialista, os solos eram bem público, não estando à venda. Numa resposta enovelada afirmou que o problema da construção estava em debate e que os terrenos ainda não podiam ser adquiridos.
Inconformado e surpreendido, o parlamentar construtor insistiu:
«Sim, mas, por favor, faça um cálculo. Em média qual o valor do metro quadrado?»
O presidente da Câmara, não querendo desagradar ao empresário, atirou para o ar, em rublos, um número inventado no momento.
O deputado silencioso puxou da calculadora, fez a conversão, e comentou:
«Incrível. É baratíssimo. Por esse preço, se me autorizassem, comprava um bairro inteiro de Leninegrado para construir prédios».
A atmosfera do almoço mudou a partir desse desabafo. A intérprete traduziu com entusiasmo. O deputado construtor logo passou a receber demonstrações de apreço excepcionais. Dirigiam-se-lhe como a um Rockefeller lusitano. O resto da delegação foi ignorado.
Dias depois, em Samarcanda, no Uzbequistão, durante a visita a uma fábrica de tapetes, o deputado mudo voltou a falar. Quis saber qual o custo do metro quadrado das peças expostas. Informado de que dependia da qualidade, anotou os preços e comentou sorridente:
«É tudo praticamente de graça. Pena que não possa levar um carregamento no avião da Aeroflot».
O director da fábrica deu algumas ordens secas e minutos depois surgiram funcionários carregados, e montes de tapetes orientais, magníficos, foram desdobrados na sala, envolvendo o deputado. O homem quase se assustou. Fez-me pensar em personagens das Mil e Uma Noites.
Do então jovem Rui Gomes da Silva - de cuja existência eu tomara conhecimento quando caiu do ar, em nevoento episódio, com um avião vindo da Jamba de Savimbi em companhia do filho de Mário Soares - a lembrança mais forte, inapagável, que conservo é a de uma conversa no Hotel Moskva, onde estávamos hospedados.
Uma manhã abordou-me para fazer uma confissão e pedir um conselho.
Vinha de cenho franzido.
«Trata-se de uma questão delicada - esclareceu. Trouxe uma mala cheia de coisas de que pretendo desfazer-me e não sei como...»
Sugeri que fosse um pouco mais preciso.
«Não quero jogar tudo no cesto dos papéis e não sei como destruir aquilo».
«Oh homem, mas de que se trata, afinal? - perguntei.
Gomes da Silva pousou em mim um olhar vazio e a confissão chegou, tímida, em voz baixa:
«Estamos a comer estupendamente. Eles oferecem-nos banquetes pantagruélicos. Foi uma surpresa para mim. Na mala eu trouxe uma montanha de pacotes de bolachas portuguesas. Foi conselho de amigos do meu partido. Disseram-me que ia passar fome na Rússia...»
Hoje é ministro.


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