- Nº 1621 (2004/12/23)

O mundo das aparências d’«O Primo Basílio»

Argumentos

Parente da contestada «Madame Bovary», «O Primo Basílio», de Eça de Queirós, é um romance típico do realismo português, que, em geral, retrata mais as promiscuidades desonrosas da burguesia do que a miséria das classes baixas. No entanto, esta obra aborda de certa maneira as condições de vida do povo, trabalhadores sem descanso e sem dinheiro, que se transformam em vingativas e ambiciosas personagens, aqui representadas por Juliana, a criada da burguesa Luísa, que descobre os amores da senhora com o primo e que lhe procura extorquir dinheiro, roupas e comodidades em troco de segredo.
Juliana é má, cínica, ladra, intrometida ou apenas uma pobre mulher solitária, revoltada, sem carinho, sem consideração dos outros, sem perspectivas de vida? O leitor escolhe e pode misturar as duas hipóteses. O narrador dá-lhe liberdade para o fazer, mostrando primeiro como a criada odeia as patroas e as suas vidas cómodas e deixando-se depois explicar porque chantageia Luísa: «Pra ganhar meia moeda por mês, estafo-me a trabalhar, de madrugada à noite, enquanto a senhora está de panria! É que eu levanto-me às seis horas da manhã – e é logo engraxar, varrer, arrumar, labutar, e a senhora está regalada em vale de lençóis, sem cuidados, nem canseiras.»
Mas o narrador vai guiando o leitor, mostrando como a criada se suaviza quando sai do quarto no sótão, cheio de percevejos e escaldante nas noites de Verão, e muda para outra divisão, progressivamente equipada com tapete e cómoda, à medida das suas exigências: «Juliana, bem alojada, bem alimentada, com roupa fina sobre a pele, colchões macios, saboreava a vida: o seu temperamento adoçara-se naquelas abundâncias; depois, (...) fazia o seu serviço com um zelo minusioso e hábil.» Afinal, é só dar melhores condições à empregada que ela retribui em trabalho, sem má vontade, sem palavras azedas, sem ameaças.
Sem ameaças, na verdade, apenas por uns tempos, porque a ambição e o medo de se ver sozinha, velha, doente e pobre atormenta Juliana e faz com que continue a chantagear a patroa. Uma é repelente, a outra é superficial, fútil, fraca, desinteressante, inculta, infiel. Ambas têm mais defeitos do que qualidades. Quem é pior? O que há de bom nesta sociedade? Pouco, muito pouco, segundo o narrador realista.

A sociedade oitocentista

De facto, a grande visada pelo romance é a sociedade portuguesa oitocentista, onde as aparências são a prioridade máxima: todos têm de parecer bonitos, ricos e respeitáveis. No fundo, ninguém o é. Leopoldina, amiga de infância de Luísa e detestada pelo marido desta por ter amantes, enumera a lista infindável de senhoras que enganam os maridos mas que não deixam de ser admiradas socialmente: «Tinham, mais ou menos, sabido conservar a exterioridade decente que ela perdera, e manobravam com habilidade, onde ela, a tola, tivera só a sinceridade! E enquanto elas conservavam as suas relações, convites para as soirées, a estima da corte – ela perdera tudo, era apenas “a Quebrais”!...»
Luísa é amada pelo marido, Jorge, e apenas desejada pelo amante, Basílio. Este, vindo de Paris e habituado à refinada moda europeia, tenta cultivar os requintes da prima, os seus hábitos e o seu guarda-roupa, guiando-a por caminhos que ela anseia conhecer, os pormenores dos decotes, a qualidade das meias, até as delícias culinárias. Acha-a irresistível, apesar do pouco refinamento e dos hábitos de burguesinha, um interesse que não é compreendido pelo seu amigo Reinando: «Não era uma amante chique: andava em tipóias de praça; usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia numa casinhola; não possuía relações decentes; jogava naturalmente o quino, e andava por casa de sapatos de ourelo; não tinha espírito, não tinha toilette... Era um trambolho!»
Luísa, tão admirada nas ruas de Lisboa, é vista como uma mulher vulgar pelos portugueses de Paris. É julgada apenas pela aparência por uns e por outros, embora com critérios diferentes. No fim, o leitor conhece-la igualmente apenas pelo aspecto. Mesmo sabendo os seus pânicos, os seus pensamentos e as suas acções, apenas conhecemos nela a vaidade com os vestidos e o terror de manchar a sua imagem. Quem ela é verdadeiramente não sabemos, porque nesta sociedade não interessa o ser, apenas o parecer.

Isabel Araújo Branco