Urbanismo

Lisboa, Arquitectura & Negócios

Manuel Augusto Araújo
Um jornal de referência, como soe dizer-se, publicava à uns meses atrás uma notícia com um título bombástico: Os Cinco Projectos que vão mudar Lisboa. Quem se ficasse pelo título, sobretudo os lisboetas, sentir-se-ia reconfortado. Finalmente a malha urbana da capital iria sofrer o impacto de projectos estruturantes, maduramente pensados e debatidos, a resolverem os problemas que, desde há muito, constrangem e distorcem o seu desenvolvimento. Quem fosse mais avisado desconfiava de tanta fartura, lembrar-se-ia de ditos igualmente bombásticos tais como Comigo Lisboa vai ficar irreconhecível, ameaça feita por Nuno Abecassis à laia de terramoto lento pronto a ir destruindo para reconstruir a cidade à sua imagem e semelhança. Felizmente os lisboetas travaram-lhe os ímpetos a tempo, antes que os mais diversos disparates fossem feitos na sequência de mais uns outros que chegaram a ver a luz da cidade.
O título, subliminarmente e nada inocentemente, reportava a coisa muito falada na década de 80, os grandes projectos arquitectónicos que revitalizaram a malha urbana de Paris: a Tête-Défense, o Grande Louvre, o Ministério das Finanças, o Museu de Orsay, o Instituto do Mundo Árabe, a Ópera de Paris e La Villette
Com esta Câmara, com este Governo, dificilmente se acreditaria em qualquer equivalente ou que uma intervenção desse género tivesse sido pensada. Com todas as dúvidas na mão, defolhava-se o teor da notícia e lá está a confirmação.
Os cinco projectos que, na opinião do jornal, vão mudar Lisboa são as Torres do Siza Vieira e o quarteirão de Jean Nouvel em Alcântara, um outro quarteirão em Santos, na avenida 24 de Julho, de Norman Forster, um projecto para os terrenos da antiga Fábrica de Braço de Prata de Renzo Piano e o Parque Mayer de Frank Gehry.
A diferença era total. Em França os projectos eram de iniciativa pública, tinham o objectivo de responder a necessidades urgentes de revitalização urbana, sócio-cultural e económica da cidade, destinavam-se a ser usufruídos pelo universo da população residente e flutuante da capital francesa. Foram projectos objecto de concursos públicos internacionais de arquitectura que deram a hipótese a aparecerem diferentes abordagens e a surgirem novos arquitectos.
Em Portugal, sem escamotear a realidade do papel marginal que a arquitectura desempenha no contexto da utilização capitalista do território nas cidades contemporâneas, tudo está nos antípodas deste modo de ver e pensar.
Os cinco projectos que, na opinião do jornal, irão mudar Lisboa, mesmo o do Parque Mayer que teoricamente irá dar primazia ao espaço público, são todos projectos imobiliários privados. Nenhuma cidade se transformou ou foi transformada por intervenções imobiliárias deste teor que resultarão inevitavelmente, seguindo a linha de marketing dominante neste género de iniciativas, em condóminos de luxo fechados ou a eles equiparados a preços proibitivos.
Esta notícia, o seu título, são a demonstração de quanto os meios de comunicação social estão cegamente permeáveis à crença nas virtudes do mercado e das intervenções privadas e como se esforçam para propalar em todos os azimutes essa sua fé, travestindo–a de interesse cultural aqui e neste caso vazado na sanha imobiliária que assalta a capital, para fingirem acreditar que assim se pode regenerar o tecido urbano. Tudo isto se mistura com o embevecimento acrítico perante meia dúzia de nomes tornados intocáveis, o que resulta num louvor desbragado à economia do «star system». Esta é uma das faces da temperatura ideológica actual. Provavelmente já nem percebem que a escolha desses arquitectos é feita não por nenhum critério de avaliação profissional, mas por critérios comerciais. São escolhidos por serem extensivamente publicados em papel couché e daí advir uma mais-valia que será incluída no preço do metro quadrado de venda. É legítimo, desde que o nome dos projectistas não seja utilizado para tentar ultrapassar os planos em vigor, e não suscita o mínimo estremecimento moral que empresas privadas actuem por esses padrões e venham a receber o retorno do seu investimento. O que não é legítimo nem moral é que se publicitem essas acções comerciais como se se tratasse de intervenções culturais decisivas para a cidade. Serão importantes e, espera-se, acima dos padrões médios, não mais que isso.
Mas, olhando mais atentamente descobre-se um interessante traço comum entre esses projectos. Todos, de um ou de outro modo, não estão em conformidade com o Plano Director Municipal, nem com o Plano de Urbanização, nem com os Planos de Pormenor quando existem.
Coincidência tão assinalável permite pensar que a escolha dos arquitectos não é um acaso, e será provavelmente uma manobra de legitimação tentando a excepcionalidade que a legislação possibilita. O que demonstra inequivocamente é que a cidade é, para essa gente, um território de oportunidades de negócio. E tudo ficaria por aqui não fosse o caso da Câmara Municipal de Lisboa não resistir a dar uma mãozinha a esse espírito empreendedor.
(continua)


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