
- Nº 1615 (2004/11/11)
Entrevista a Romão Lavadinho, presidente da Associação de Inquilinos Lisbonenses
Direito a uma habitação digna
Em Foco
Defendendo que a habitação é um direito de cidadania, consagrado na Declaração dos Direitos Humanos e na Constituição da República, Romão Lavadinho, em entrevista ao Avante!, afirmou que a existência de um mercado de arrendamento, com oferta suficiente em qualidade e preço, é determinante para estabelecer os laços contratuais e de confiança entre quem fornece o serviço, o proprietário, e entre quem o utiliza, o arrendatário. Sublinhou ainda que o Estado deveria garantir uma política social de apoio aos grupos populacionais mais carenciados e desfavorecidos, quer na concessão de subsídios quer em realojamentos resultantes da reabilitação urbana.
Avante! (AV): Como funcionava o regime de arrendamento antes e depois de 1974?
Romão Lavadinho (RL) : Até 1980 o regime de arrendamento funcionava exactamente nas mesmas condições de dois séculos atrás, ou seja, as pessoas arrendavam casa, o proprietário fazia um contrato, que só se podia denunciar em condições excepcionais, ao contrário do que vai acontecer agora.
AV: Hoje, esse tipo de contrato tem alguma fundamentação?
RL: Até aqui os inquilinos estavam super-protegidos. Agora, com a nova lei, vai-se passar exactamente o contrário, ou seja, toda a protecção deixou de estar com o inquilino e passou para o senhorio, com este a resolver os contratos como bem entender. A AIL pensava que a nova Lei do Arrendamento podia vir resolver a questão do edificar o que se encontra degradado, especialmente as casas com rendas anteriores a 1980, as rendas fixadas, e que os senhorios não recuperaram, não tendo feito obras de oito em oito anos sem requalificaram o seu próprio património.
AV: O Governo tem apregoado que a degradação habitacional deve-se ao facto de as rendas estarem «congeladas» desde 1974. Estas afirmações são verdadeiras?
RL: O que aconteceu é que as rendas, por volta de 1940, em Lisboa e no Porto, foram congeladas pelo Estado. Após o 25 de Abril saiu uma lei que alargou essa medida a todo o País, mas só até 1981. Após essa data, o proprietário, após ter efectuado as obras nos seus imóveis, podia inserir ou fazer incidir o valor gasto nas rendas dos inquilinos.
O que acontece é que os proprietários nunca fizeram essas obras, com o intuito de que os inquilinos saíssem dos imóveis para depois poderem fazer o que quisessem. Hoje, segundo os sensos de 2001, existem 544 mil fogos devolutos, que não foram colocados no mercado de arrendamento, e que são muito rentáveis, porque não pagam impostos.
AV: Qual o objectivo desta lei?
RL: Contrariamente, e curiosamente, o objectivo deste Governo e desta lei é de desenvolver o mercado de compra. Os bancos já estão a rever toda a sua posição, aumentando os contratos de crédito da habitação. Do ponto de vista da AIL, os fogos para arrendamento vão ser diminutos e vão ficar para situações transitórias, jovens que vem para os grandes centros estudar, trabalhadores temporários, portanto vamos voltar ao arrendamento marginal.
AV: Quando é que a Lei do Arrendamento vai ser aprovada?
RL: A lei deverá ser votada na Assembleia da República no dia 18 de Novembro. Depois começará a ser aplicada no primeiro trimestre de 2005.
AV: O que é que «esconde» esta lei?
RL: Esta nova lei pretende acabar, fundamentalmente, com os contratos anteriores a 1980. Depois, porque há já no mercado 1,4 casas por cada família, o Governo vai criar uma outra lei, paralela à nova Lei do Arrendamento, que é a das Sociedades de Reabilitação, que tem como objectivo a regeneração do parque habitacional, mas apenas o de luxo.
As pessoas com os contratos anteriores a 1980 vão ser obrigadas a sair das suas casas, se não puderem pagar o valor exigido pelo proprietário, e serão colocadas em casas de habitação social. O que esta lei esconde, segundo o ponto de vista da AIL, é que se vai acabar com o mercado de arrendamento e desenvolver o mercado imobiliário.
AV: Quer isto dizer que se vai começar a investir em habitação social?
RL: Pelo contrário. O que o Estado está a fazer é pôr no mercado os fogos que tinha arrendado com rendas sociais. Não havendo habitação social, eu nem sei onde é que eles (Governo) vão realojar pessoas que não têm condições de pagar o valor da renda pretendida pelo proprietário.
AV: As pessoas com mais de 65 anos e menos de cinco ordenados mínimos podem estar de facto descansadas, com esta nova Lei do Arrendamento?
RL: Não é tanto assim. Há um artigo na lei que diz que se por acaso o prédio estiver em perigo de ruína, e se o proprietário fizer obras, pode fazer incidir o valor das obras na nova renda que vai aplicar.
Depois há uma questão que retira toda a possibilidade de justiça social nesta matéria. Como o proprietário não pode aumentar as rendas, também não é obrigado a fazer qualquer tipo de obras nos seus imóveis, mesmo aquelas que são da sua responsabilidade. Resultado, vai continuar a chover na casas das pessoas, a não haver casas de banho e as instalações eléctricas continuarão a ser um perigo, por exemplo.
AV: O certificado de habitabilidade vai ser abrangido nestes casos?
RL: O certificado de habitabilidade é só para o caso de serem feitas obras no imóvel e do proprietário querer aumentar a renda. Se o Estado não suportar um subsídio para as famílias com mais de 65 anos e menos de cinco ordenados mínimos, naturalmente não vai haver obras de reabilitação.
AV: O que era necessário para que o mercado de arrendamento funcionasse?
RL: Esta nova lei não era necessária, bastava que se cumprisse a actual.
AV: Para além das sessões de esclarecimento já realizadas pela AIL, como é que as pessoas podem satisfazer as suas dúvidas em relação a esta nova lei?
RL: Estamos disponíveis para ajudar e informar as pessoas onde seja necessário. Depois vai ainda realizar-se uma série de iniciativas, em várias juntas de freguesia de Lisboa, no sentido do esclarecimento e da informação.
Por outro lado, na AIL temos um corpo jurídico competentíssimo no sentido de ajudar os conflitos que se vão dar a seguir à aprovação da lei. Para isso bastará ser sócio da associação. Para saber mais informações, além do contacto telefónico (21 885 4280), os inquilinos poderão ainda visitar o site www.ail.pt.
Contra a instabilidade social
Porque a existência de um mercado de arrendamento, com oferta suficiente em qualidade e preço, é determinante para estabelecer os laços contratuais e de confiança entre quem fornece o serviço, neste caso o proprietário, e entre quem o utiliza, neste caso o arrendatário, a Associação de Inquilinos Lisbonenses defende, no quadro das alterações legislativas em apreciação, uma estabilidade e segurança contratual que beneficie as partes envolvidas. Assim, importa que a legislação:
- Garanta a necessária estabilidade dos contratos de arrendamento, habitacionais e não habitacionais, em ordem em que não acarrete uma instabilidade social e económica, não determinando que os cidadãos e as empresas sejam constrangidos a mudanças regulares do seu local de habitação ou de actividade económica, com os encargos inerentes, e uma clara afectação negativa da produtividade do trabalho, e não conduza ao encerramento de empresas e à perda de postos de trabalho, aumentando o desemprego, inviabilizando o investimento e reduzindo a produção de bens e serviços;
- garanta a necessária dinamização do mercado de arrendamento, para que muitos cidadãos e empresas não se vejam na contingência de adquirir habitação ou instalações própria, endividando-se por longos períodos e imobilizando vastos recursos financeiros retirados à dinâmica económica, tanto no consumo como no desenvolvimento de projectos e actividades empresariais;
- garanta uma política social de apoio aos grupos populacionais mais carenciados e desfavorecidos, quer na concessão de subsídios quer em realojamentos resultantes da reabilitação urbana, para o que se impõe uma política de incentivo à construção de habitação social;
- garanta para os Orçamentos do Estado e das Autarquias uma arrecadação de impostos resultantes da utilização normal do património, em sede de IRS ou de IRC e em sede de IMI, ou resultante do agravamentos a aplicar quando o património não é utilizado para os fins próprios;
- garanta medidas eficazes, quer administrativas quer financeiras, de apoio aos proprietários no âmbito da reabilitação do património, e o seu uso após a reabilitação.
Ausência de uma política de habitação
A Associação de Inquilinos Lisbonenses (AIL) considera que se justifica uma maior dinâmica no investimento público em habitação social em ordem a satisfazer a procura de alojamento das camadas da população mais desfavorecidas e carenciadas. Sustentam ainda, entre outras propostas, para efeitos de certificação e consequente actualização das rendas, importa efectuar uma avaliação das obras efectuadas na evidência da ausência de facturas de suporte. Neste sentido a AIL defende:
- Amortizar o valor das obras realizadas na nova renda durante os dez anos seguintes;
- fazer intervir na fiscalização das obras de reabilitação além das câmaras municipais outras entidades, públicas ou privadas;
- incluir os arrendatários como parte da fiscalização, directamente ou através de representação associativa;
- criar um fundo público que suporte os custos da fiscalização com vista à emissão do «certificado de habitabilidade» no âmbito da reabilitação;
- criar ou aditar à «ficha do prédio» os registos das intervenções efectuadas;
- construir um mecanismo arbitral que resolva em tempo útil os eventuais diferendos;
- agravar em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), por exemplo em mais de 50 por cento, os fogos degradados e arrendados, enquanto não reabilitados e enquanto mantivessem a situação, além de não poder haver aumento ou actualização da respectiva renda, passando o inquilino a depositar a renda tendo o proprietário direito ao seu levantamento após as obras e respectiva certificação;
- agravar em sede de IMI, até 10 vezes o seu valor num período de cinco anos, os fogos devolutos e degradados;
- agravar em sede de IMI os fogos construídos recentemente e devolutos, com mais de m ano sem utilização, no sentido de serem colocados no mercado, de arrendamento ou venda, o que viria a contribuir para a necessária baixa dos preços;
- reduzir o IMI dos fogos arrendados nas devidas condições de habitabilidade em, por exemplo, 50 por cento;
- eliminar todas e quaisquer isenções, benefícios ou bonificações fiscais, sobre o imobiliário destinado a arrendamento;
- tratar autonomamente em sede de IRS ou IRC o rendimento das rendas habitacionais, comerciais, industriais, serviços, etc;
- cometer sem tibiezas às câmaras municipais, como entidades gestoras do território, a fiscalização e a intervenção nesta área, cabendo-lhes efectuar o levantamento da situação e proceder à cobrança do IMI, deixando-lhes a iniciativa plena de decidirem sobre as percentagens e valores a cobrar, dentro dos princípios expostos;
- que sejam constituídas Comissões Arbitrais no âmbito municipal, ou que se imputem às já existentes, incluindo Centros de Arbitragem, responsabilidades no esclarecimento de situações e capacidades de decisão.
Favorecimento dos proprietários
Uma questão apresentada como central para a alteração legislativa refere-se aos incumprimentos dos inquilinos e a morosidade das acções de despejo. Naturalmente que esta morosidade não é um problema de arrendamento, mas um problema das condições de funcionamento do aparelho judicial.
Nesta lei não se argumenta contra o incumprimento dos senhorios, e são em números muitíssimos superiores, no que respeita às obras de conservação e à necessidade de reparações urgentes quando se verificam problemas nos prédios e fogos, designadamente com origem nas coberturas e canalizações. Neste sentido, a Associação de Inquilinos Lisbonenses exige:
- Considerar na lei uma igualdade de direitos e deveres das partes, senhorios e inquilinos, com penalização para ambos em casos de incumprimento;
- ponderar a constituição de tribunais especializados na questão da habitação, englobando o arrendamento empresarial, que deliberassem sobre os conflitos em tempo útil.