Brigada de solidariedade regressa

A prioridade de Cuba são as pessoas

Isabel Araújo Branco
A brigada de solidariedade a Cuba organizada pela JCP regressou a casa recentemente. Em entrevista, quatro membros contam as suas impressões e conclusões de três semanas de viagem.

«A organização da sociedade permitiu que os danos do furacão não fossem visíveis 48 horas depois»

Durante três semanas, 15 jovens portugueses da JCP trabalharam na reconstrução de uma escola técnica de artes e da Universidade de Matanzas, em Cuba, ao lado de alemães, cipriotas, gregos, turcos, checos e cubanos, integrados numa brigada de solidariedade com o povo cubano. Mas esses dias não foram apenas passados a cavar valas, a acartar entulho e a pintar. Houve muitos debates, conversas, visitas e, claro, festas. Como conta Nina Marques, Filipe Ferreira, Rui Afeiteira e Frederico Simões, foi uma experiência inesquecível que querem repetir. Dormiram pouco, mas «o pessoal aguentou». E, se não vêm mais fortes, estão pelo menos mais magros.
«Debatemos muito, pudemos perguntar muita coisa, colocar todas as dúvidas e conseguimos conhecer um pouco da realidade cubana. Um pouco ou bastante, porque a discussão foi tanta, abordámos variados temas e como os cubanos estão abertos a todas as questões, deu para perceber muita coisa», explica Frederico. E uma das principais conclusões foi que, em Cuba, as pessoas são prioritárias.
«Nunca nos apercebemos de nenhuma tentativa de esconder fosse o que fosse, nomeadamente as pessoas que não estão com a revolução», afirma Filipe. «Só o facto de trabalharmos com presos integrados num plano de reinserção social diz tudo», acrescenta Nina.
A educação foi um dos temas mais abordados e as diferenças em relação ao sistema português saltaram à vista. Cuba é o país do mundo com mais bolsas per capita, onde tudo é gratuito, incluindo os materiais escolares e onde as turmas nas escolas secundárias têm um máximo de 15 alunos.
Também os cubanos foram surpreendidos com a realidade portuguesa, mas pela negativa. «Ficavam admiradíssimos quando dizíamos que tínhamos de pagar para vir ao médico ou que se demora 40 ou 50 anos para pagar a casa», conta Nina. Filipe recorda que «para eles é inimaginável que uma ida ao dentista custe mais de 10 por cento do ordenado mínimo».

Virtudes e defeitos

Os direitos à educação, à saúde, à habitação e à alimentação são os mais marcantes na sociedade cubana, mas há outras características evidentes, como a solidariedade entre a população, a organização social e a espontaneidade das pessoas.
«Os cubanos até dançam no autocarro. Onde esteja a passar salsa – seja na fila do supermercado ou num bar – as pessoas dançam», diz Rui, que recorda ainda a prevenção ao furacão Charley, que assolou o território durante a visita do grupo português. «Na véspera todas as pessoas sabiam onde estavam de serviço para minorar os estragos e depois arranjá-los. A organização da sociedade e a solidariedade do povo permitiu que os danos causados não fossem visíveis ao fim de 48 horas.»
Filipe garante que os cubanos «estão preparados para lidar com qualquer tipo de acontecimento, quer seja um desastre natural ou um eventual ataque. Através dos Comités de Defesa da Revolução (CDRs) organiza-se uma série de preparações e de tarefas.»
«Há coisas culturais que vêm da tradição, mas é evidente um desenvolvimento a partir da revolução», sustenta Frederico. «Há uma forma de estar que é fruto de um projecto socialista. Tudo o que o cubano tem é provido de uma função, ao contrário do que acontece em Portugal. Não tenho ideia que os cubanos não têm determinadas coisas por causa de dinheiro, mas nós damos valor às aparências, eles dão valor à essência. É muito mais importante uma pessoa ter cultura, saber estar bem consigo, desenvolver o intelecto. A arte, por exemplo, está em todo o lado. Vemos tantos ateliers com pessoas a pintar! Não estão interessados em mostrar opulência ou em ter status através da casa.»
Mas Cuba não tem só virtudes. Os quatro jovens não querem ser acusados de ingenuidade e referem alguns problemas. «O turismo veio abrir algumas fissuras sociais. Quem está ligado à área tem acesso com muita facilidade a dólares, podendo usar meios ilícitos. É normal, por exemplo, um táxi cobrar dez dólares por uma bandeirada sem ligar o táximetro. Uma pessoa com um esquema destes pode fazer numa hora o dinheiro equivalente ao ordenado de um operário», exemplifica Rui.
O regresso a casa é um misto de vontade de prolongar a estadia e de aplicar no nosso país o incentivo à luta que sentiram na visita. «As nossas tarefas são em Portugal e temos tanta coisa para transformar! Temos o exemplo de uma sociedade diferente, que, apesar das dificuldades que passa, consegue resistir», sustenta Rui.
«O papel de cada um de nós é onde nascemos, é aqui que temos de lutar para desenvolver o país, senão todos os comunistas estavam em Cuba», refere Frederico. «Naquelas duas semana habituámo-nos a um estilo de vida e a uma maneira mais humana das pessoas se tratarem que choca um bocado com o que reencontramos quando chegamos aqui. Acontece de certa forma o mesmo depois dos três dia da Festa do Avante!.» Frederico está com sorte. A edição de 2004 da Festa começa já amanhã na Quinta da Atalaia e ele pode matar saudades.

Brigada de solidariedade
Mitos que se desfazem

Altíssimas taxas de licenciados, educação e saúde gratuitas, habitação e alimentação barata – estas são algumas características de Cuba. Os jovens visitantes destacam outra, a participação eleitoral.

Para muitos, Cuba tem um sistema ditatorial e qualquer ditadura se sustenta com a ignorância e o analfabetismo do povo e caracteriza-se pela falta de condições e pela ausência de eleições. Na verdade, a realidade observada pelo grupo português mostra que Cuba não é uma ditadura.
Em primeiro lugar, as eleições são mais participadas do que em Portugal. «Os cubanos votam mais e de forma mais directa do que nós, portugueses. O sistema quer que as pessoas participem na política do país», especifica Frederico Simões.
«Constatei o que é uma democracia participada e participativa. Os Comités de Defesa da Revolução (CDR) estão estruturados por rua, por bairro e por cidade. Um problema concreto de um quarteirão é discutido no CDR do bairro, sem grande interferência do Partido. A grande força é a população. Isto não são coisas só de nome, são coisas bastante organizadas», assegura Rui Afeiteira.
O segundo mito que é desfeito é a ignorância das pessoas. Os cubanos são conhecidos em todo o mundo pela sua grande cultura geral, o que pode ser assegurado por qualquer turista, mesmo aquele que mal sai dos hotéis ou das praias. As conversas sobre a cultura e a geografia dos países de origem dos visitantes são uma constante.
«Conhecem muito bem a situação do país, mas também do resto do mundo. Sabem que o Presidente da República português é o Jorge Sampaio. A população tem acesso a todo o tipo de informação, não há nenhum tipo de condicionamento. Eles vêem a CNN em Espanhol, por exemplo. E há um esforço nas escolas para aumentar a cultural geral, mas também para haver televisões em todo o lado, mesmo nas aldeias mais isoladas, para que as pessoas tenham acesso aos programas informativos», lembra Filipe Ferreira.
Em Cuba, 95 por cento das pessoas que iniciam os estudos conseguem completá-lo, ou seja, terminam uma licenciatura. «Isso é uma utopia em Portugal», comenta Frederico. «Eles interessam-se por questões culturais. Nós, por não queremos ou por não termos acesso, poucas vezes vamos ao teatro, ao passo que em Cuba era normalíssimo falarem connosco sobre espectáculos: “Não viste aquela peça, aquele bailado?”», recorda Rui.

Responsabilidade aos jovens

Em Cuba, a saúde e a educação são gratuitas, mas outras necessidades básicas estão asseguradas a preços mínimos, como a habitação, a alimentação e o desporto. Estes sãos os principais trunfos da revolução. Rui Afeiteira acrescenta outros dois: «o sentido patriota e a consciência revolucionária de grande parte daquela população. Isso foi o que mais me pressionou. A política de massas é muito vincada, nomeadamente com a participação nos organismos, nas associações, nas federações, nos comités de defesa da revolução. Aqui, sim, vimos o espírito da revolução cubana.»
A dinâmica revolucionária é inseparável dos seus frutos sociais e do envolvimento da população. Neste campo, o trabalho feito pelos jovens é fundamental. «A participação da juventude faz parte da ideia de que a revolução não acabou, é algo que se está a fazer todos os dias e que tem de ser melhorada diariamente. A revolução só tem futuro com a participação dos jovens. Não há separação entre as pessoas e o Governo. Nunca ouvimos ninguém dizer “O Governo faz…”, mas sim “Nós fazemos…”, sempre no plural», afirma Filipe. «É por isso que a revolução se renova e as pessoas se envolvem», acrescenta Frederico.

«Existem muitos Fideis»

O futuro de Cuba – ou de qualquer outro país – é uma incógnita, mas os visitantes portugueses atrevem-se a fazer uma antevisão com base no que observaram e no que ouviram: a continuação da revolução.
«A afronta à sociedade cubana pelos Estados Unidos é muito grande e enquanto houver pessoas como o presidente Bush não podemos prever o que pode acontecer. Mas Cuba está preparada para seguir o processo revolucionário e a via do socialismo. O facto dos jovens terem muitas responsabilidades é uma forma de dar continuação à revolução», sustenta Frederico Simões.
Rui Afeiteira refere que é comum pensar que Fidel Castro é a figura da revolução, «mas a verdade é que verificámos que ele tem uma grande importância na sociedade mas que não é o único. Quando perguntávamos aos cubanos o que acontecerá quando Fidel morrer, a resposta era simples: “Existem muitos Fideis, muitas pessoas com capacidade para dar continuação à revolução.”»
«Falámos com um cubano que nos disse que há coisas que podiam estar melhores, mas que têm de resistir ao imperialismo», recorda Nina Marques. Uma das frases que os visitantes mais ouviram foi «Voltar atrás nunca». «Os cubanos têm a noção de que a revolução foi um avanço social e que ganharam muito. Antes havia miséria e agora têm acesso a coisas que não querem deixar de ter. Para eles, defender a revolução é seguir em frente e não defender a revolução é voltar ao passado», acrescenta Filipe Ferreira.
Apesar das novas medidas tomadas pelos EUA, os cubanos mantêm a esperança no apoio internacional, nomeadamente na relação com a Venezuela, um dos países a que compram petróleo.

«Se Cuba existe, é porque outro mundo é possível»

A curiosidade de ver como funciona uma sociedade socialista e a vontade de manifestar solidariedade com a resistência do povo cubano aos ataques dos Estados Unidos levou os 15 jovens portugueses a participar na brigada da JCP a Cuba. No final, o balanço vai muito para além do positivo.
É com emoção que Rui Afeiteira diz que se sente cubano de coração. «Vivemos, convivemos, trabalhámos, conversámos, debatemos, dançámos com eles... Fiz amigos. Chegaram a tratar-me por irmão. Fizeram uma festa de aniversário quase surpresa.» Foram três semanas intensas que ficaram marcadas na mente, na memória e no afecto dos visitantes.
«Ainda não consegui assimilar toda a experiência e nem sei qual o impacto que tem em mim, mas quero voltar lá, de preferência integrado numa brigada. Também gostava de viajar mais por Cuba para conhecer as outras partes da ilha», diz Filipe Ferreira. «Estar lá e ver que as coisas de facto são diferentes e que funcionam é extremamente motivador para a luta, para conseguir algo cá e noutros sítios do mundo.»
O sonho de voltar é partilhado pelos quatro entrevistados, tal como a motivação extra que sentiram na ilha e que transportam consigo no regresso a casa. «É uma experiência muito rica que já recomendei a muitos camaradas. Sai-se de lá com uma percepção da evolução do socialismo que nos dá força, que nos enriquece e que nos faz sentir que é possível. Há muitas pessoas que esmorecem perante as ofensivas do capital e da direita e Cuba dá-nos alento para continuar. Se Cuba existe, é porque outro mundo é possível», salienta Frederico Simões.
Para Nina Marques, esta viagem permitiu constatar que uma sociedade alternativa pode ser construída em qualquer país. «É preciso as pessoas serem mais atentas e não pensarem apenas em si mas também nos outros. Em Cuba, funcionam como colectivo e não se sente individualismo como em Portugal.»

De Portugal a Cuba

A organização política e social de Cuba funcionou como grande atractivo para os jovens portugueses, amplificado pela forma como o país luta contra as ofensivas do seu imenso vizinho, os Estados Unidos. «Queria ver o socialismo cubano, como as pessoas viviam, as dificuldades que o embargo dos EUA causa. Ouvimos tantas coisas, queria ver se coincidiam ou não», diz Nina.
Filipe sublinha que a resistência do povo cubano é um grande símbolo a nível mundial. «Fui perceber como eles conseguem fazê-lo e as hipóteses de construir algo, não copiando. Que tipo de relações se estabelecem entre as pessoas, como a sociedade se organiza conseguindo resistir a uma ofensiva tão grande. Há muito tempo que queria ir a Cuba pelo símbolo político e social que é, não exactamente pelas praias. Fomos mais para aprender do que para trabalhar, embora o nosso trabalho fosse útil e para eles seja importante saberem que nos outros países há pessoas que expressam solidariedade.»