
- Nº 1586 (2004/04/22)
O segredo de Carlos Paredes
Nacional
Num dia particularmente bonito de Lisboa, em que todas as coisas me sorriam, ao entrar num táxi, ouvi repicar, em timbres cristalinos, a guitarra mágica de Carlos Paredes. Entre a surpresa e o encantamento, disse ao condutor, a sondá-lo:
— Então o senhor gosta desta musica...
— Eu? Adoro. Quando a escuto, toca-me a alma. Não sei porquê. Tenho todos os discos do Carlos Paredes.
Percebi então, melhor do que nunca, que estes sons que o Carlos, meu amigo e companheiro, recebeu do povo da nossa terra, assim liquefeitos em luz, ao povo tornam numa clara mensagem de alegria e esperança.
O táxi rodava pelas ruas da Baixa, perto do Tejo, e eu, sem perder uma nota, rememorava tantos momentos de entendimento profundo em que a minha vida se cruzou com a de Carlos Paredes, na luta pelos nossos ideais ou em conversas sobre a arte e sobre a estranha beleza de um mundo tão constantemente cruel como é o nosso.
O Carlos Paredes dá-nos precisamente o reverso da vontade de poder e da longa caravana de injustiças que sempre combatemos. A sua música, onde a felicidade pousa nas leiras de Portugal e uma branda aragem irmana o trabalho e a festa, traz acordes de igualdade às desigualdades da terra e traz soluços de júbilo, porque nela se harmonizam, como num paraíso sonhado, a dor e o prazer.
Ah! Carlos Paredes, quantos momentos de exaltação serena e de confiança na Humanidade a tua música me tem trazido. Mesmo que o cepticismo volte depois a arrepelar-me o espirito, ficou em mim essa pureza de criança grande que anima toda a tua criação.
A guitarra portuguesa, que teu avó e teu pai tocaram com mestria, é nas tuas mãos sortilégio governado pela verdade melódica, um mistério simples e infinitamente complexo, como todos os mistérios, que estiveste bem perto de decifrar. O que nele permanece semi?oculto, já longe dos campos do Mondego, dos «senhores da terra» e da embruxada noite de Coimbra, é como o ovo de Colombo: é o segredo do amor, que consiste em passar quase insensivelmente dos muros do eu para o sereno e total brilho da dádiva.
Urbano Tavares Rodrigues